Por Amir Labaki
Apenas oito documentários, sendo
três longas e cinco curtas-metragens, estão entre os 40 títulos da
mostra “1973 – 50 Anos Depois”, exibida pela Cinemateca Brasileira até
o próximo domingo (6). E não há nisso qualquer reclamação quanto à
inspirada curadoria do cineasta Paulo Sacramento, que estreou na direção
de longas-metragens com nada menos que “O Prisioneiro da Grade de
Ferro: Autorretratos” (2003), um inesquecível mergulho no cotidiano do
presídio do Carandiru premiado tanto pelo É Tudo Verdade quanto pelo
Tribeca.
O vigoroso mosaico cinematográfico
selecionado por Sacramento reafirma a absoluta hegemonia da produção
ficcional, tanto no mercado quanto no imaginário, ainda no início dos
anos 1970. A escalada do documentário não estava longe, a partir do
final da década de 1980, impulsionado pela revolução digital e pelo
desenvolvimento de uma produção finalmente robusta de longas-metragens
não-ficcionais, já neste século disputada pela era da serialização
típica do streaming.
A seleção de documentários
brasileiros espelha bem o panorama de então. O único longa-metragem
não-ficcional é “O Fabuloso Fittipaldi”, uma das raras investidas fora
da ficção do mestre (ainda subestimado) Roberto Farias (1932-2018). Nada
que surpreenda: longas documentais eram avis rara nas salas do país,
como mundo afora.
Não me compreenda mal. Quase todos
os principais cineastas brasileiros, de Humberto Mauro e Glauber Rocha a
Ana Carolina e Walter Salles, tem suas obras marcadas pela realização
de documentários. Na gangorra tradicional de surtos e colapsos
produtivos da história do cinema nacional, a produção documental é a
mais resiliente, como também sempre esteticamente catalisadora de
inovações. Lembrem-se, para ficar em dois exemplos, da aurora do Cinema
Novo e da Retomada pós-Embrafilme.
Durante a maior parte do primeiro
século do cinema, marcadamente no Brasil, essa produção não-ficcional
renovadora deu-se com curtas-metragens. A safra de 1973, no ciclo da
Cinemateca, traz nova confirmação. É notável a diversidade social e
cinematográfica dos cinco filmes.
“Alma no Olho”, de Zózimo Bulbul
(1937-2013), é um original e pioneiro ensaio quase coreográfico sobre a
escravidão e o racismo no país. “Campos Elísios” inaugura, por sua vez, a
cartografia paulistana de toda a obra de Ugo Giorgetti. “Loucura e
Cultura”, de Antônio Manuel, se destaca na aproximação entre artistas
visuais e o cinema experimental nos anos 1970.
Dois retratos nada ortodoxos
reafirmam a potência do chamado cinema marginal. Do crítico Jairo
Ferreira (1945-2003), “O Guri e Os Guris”, centrado em Maurice Leagard
(1925-1997), criador do Clube de Cinema de Santos, instiga uma reflexão
ainda atual sobre a cinefilia. Já Ivan Cardoso rompe com a reverência do
gênero ao frisar a construção do personagem público do sambista
“Moreira Da Silva”.
Mais pontual é a
representatividade do documentarismo internacional no ciclo.
Indiscutível, contudo, que os dois títulos escolhidos se impõem pela
excepcionalidade e ressonância. Trata-se curiosamente de filmes quase
polares na carreira de seus realizadores, ambos americanos, um do
período inicial, outro um algo precoce testamento.
Rodado em Memphis, no estado
sulista do Tennessee dos EUA, “Juvenile Court” já é o sétimo retrato de
instituições americanas em apenas seis anos de atividade de Frederick
Wiseman. Seu estilo observacional, distanciado, não-instrusivo,
consolidava-se, aqui se somando a uma de suas características
personalíssimas, dentre as destacadas pelo também documentarista Errol
Morris: a longa duração. É aqui, ao acompanhar a sucessão de audiências
num tribunal juvenil, que Wiseman começa a se afirmar como um dos
pioneiros do que no século 21 foi batizado como “slow cinema” -de
Apichatpong Weerasethakul e James Benning a Pedro Costa e Cao Guimarães.
Enquanto Wiseman até hoje lapida o
mesmo estilo, com novo filme (Menus Plaisirs - Les Troisgros)
programado para estrear no final do mês no Festival de Veneza, Orson
Welles (1915-1985) reinventou-se até seu último longa-metragem,
“Verdades e Mentiras” (disponível em DVD pela Versátil). Em torno de um
dos grandes falsificadores de pinturas do século 20, o húngaro Elmyr de
Hory (1906-1976), Welles constrói um dos mais subversivos ensaios
cinematográficos.
“Verdades e Mentiras” é sim um
documentário sobre arte e falsificação, autoria e charlatanismo,
autenticidade e imitação, mas também sobre a obra do próprio dele
próprio, Welles, e sobre o estofo de que os filmes são feitos. Vendo-o
ou revendo-o, aquele 1973 também ainda não terminou.