Por Amir Labaki
Quem dera toda série documental
autocelebratória fosse como “100 Anos da Warner Bros”, de Leslie Iwerks.
Ponto para o radar de Cannes Classics, a mostra dedicada à cinefilia do
Festival de Cannes, que lançou no mês passado, numa sessão única, os
dois primeiros capítulos, logo disponibilizados pela HBO Max. Narrada
por Morgan Freeman, a produção já pode ser assistida na íntegra, de
pouco mais de quatro horas, desde a estreia na semana passada dos dois
episódios finais.
A saga secular do estúdio fundado
em 1923 pelos irmãos Harry, Albert, Sam e Jack Warner, de uma família de
imigrantes judeus poloneses (apenas o último nascido em solo
americano), é um autêntico supletivo da história de Hollywood.
Acompanha-se o arco da empresa familiar fundada como minúscula exibidora
de filmes mudos até suas constantes adaptações para a era das
megacorporações midiáticas do final do século 20 e início deste 21.
A mais recente consolidação tem
pouco mais de um ano e atende por Warner Bros. Discovery. A despedida do
clã Warner data de 1967, com a aposentadoria de Jack (1892-1978). A
trajetória do polêmico caçula não é poupada de escrutínio crítico já no
episódio inaugural, “Do Que São Feitos os Sonhos”.
Jack foi o único dos irmãos a
ceder, nos anos 1950, às pressões da histeria anticomunista do
macarthismo, depondo no Comitê Parlamentar de Atividades
Anti-Americanas. Na mesma década, numa manobra que não soaria nada
estranha aos espectadores da recém-encerrada “Succession”, ele passou a
perna nos dois irmãos ainda vivos, rompendo um acordo de desvinculação
familiar do estúdio e o adquirindo numa chicana sigilosa. Desde 1948,
porém, a “era de ouro dos estúdios” se encerrava, sobretudo a partir da
decisão judicial antitruste que proibiu a integração numa mesma
companhia de todo o ciclo do negócio cinematográfico, da produção à
exibição.
Esse eixo focado nas reviravoltas
na indústria audiovisual (incluindo pioneiras incursões no campo
fonográfico, televisivo e dos jogos) tem fascínio próprio, mas a série
de Iwerks encanta mesmo ao tratar da produção de incontáveis filmes, e
algumas produções de TV, que trazemos na memória. Aliás, uma boa seleção
cinéfila forma um ciclo em comemoração ao centenário na mesma HBO Max,
com títulos tão distintos como “Uma Aventura na Martinica” (1944), de
Howard Hawks, “Rastros de Ódio” (1956) de John Ford, e o primeiro “Mad
Max” (1979), de George Miller.
Uma vertente se reafirma na
sucessão de épocas: o casamento entre diversão e engajamento social.
Desenha-se uma linha firme entre os filmes de gângsteres dos anos 1930,
como “Inimigo Público” (1931) de William A. Wellman, clássicos
antinazistas da Segunda Guerra, como “Casablanca” (1942) de Michael
Curtiz, a radiografias do mal-estar americano da década de 70, como “Um
Dia De Cão” (1975) de Sidney Lumet, e thrillers históricos, como “Boa
Noite e Boa Sorte” (2005), de George Clooney.
O desafiador interregno entre a
Hollywood dos grandes estúdios e a Hollywood das megacorporações da era
digital, blockbusters e produções em série torna particularmente
interessante o segundo episódio, ‘Clint, Kubrick & Kryptonita”. “O
caso da Warner Bros. é que ela deu a cineastas sérios uma verdadeira
casa”, reconhece um deles, Martin Scorsese.
Na virada dos anos 1960 para os
70, ninguém menos que Stanley Kubrick encontrou na Warner porto seguro
para a metade final de sua carreira, combinando reconhecimento e
bilheteria. O mesmo vale para Clint Eastwood, inicialmente como campeão
de bilheterias no papel do justiceiro Dirty Harry, logo depois como
diretor tão consagrado quanto longevo.
Um dos mais argutos entrevistados
da série, o crítico e apresentador Ben Mankiewicz (Turner Classics
Movies), destaca a presciência da Warner -e não estava falando da
primeira aposta em filmes sonoros, com “O Cantor de Jazz” (1927), ou da
oportunidade para talentos afro-americanos, como a estreia na direção do
fotógrafo Gordon Parks, “Com o Terror na Alma” (1969). “Estamos vivendo
hoje num mundo de filmes e franquias de super-heróis, e isso começou em
1978, com um filme da Warner”, sustenta Mankiewicz, referindo-se a
“Superman”, de Richard Donner.
“Heróis, Vilões e Amigos”, o
terceiro episódio, dedica-se a este filão (“Batman” e o universo
expandido DC, “Harry Potter”), quase onipresente nas telas grandes de
hoje. O faro para marcos produzidos para a telinha, de “Friends”
(1994-2004) a “Ted Lasso” (2020-2023), reporta-nos no capítulo final,
“Mundos Mágicos e Big Bang”, ao atual estado das coisas, em que a
atividade inicial dos irmãos Warner, o entretenimento público das salas
escuras, parece como nunca desafiada. O segundo século da Warner convida
novas reinvenções.