Por Amir Labaki
A
exposição “Serguei Eisenstein e O Mundo”, até 4 de junho próximo
no Centro Cultural Fiesp – Sesi-SP, apresenta o terceiro e menos
conhecido pilar da obra do cineasta de “O Encouraçado Potenkim” (1925):
sua produção gráfica. Não se trata da primeira mostra do gênero no país,
precedida por uma de modestas dimensões no Rio dos anos 1970, mas é a
mais expressiva. Ninguém menos que Naum Kleiman, o maior especialista
mundial na obra de Eisenstein, é um dos curadores, ao lado do brasileiro
Luiz Gustavo Carvalho.
Trabalhando
inicialmente ao lado de Pera Atasheva (1900-1965), a víúva de
Eisenstein, Kleiman tem sido essencial para a preservação, restauro e
divulgação do arquivo do cineasta, morto precoce aos 50 anos, em
desgraça frente ao regime stalinista. Deve-se a ele a reconstituição, na
forma fragmentada possível, do interrompido “O Prado de Beijin”
(1937-1968), a organização da edição russa dos ensaios, artigos e
memórias de Eisenstein e da catalogação e difusão póstuma de obra
gráfica, entre outros feitos, como o estabelecimento do Museu de Cinema
em Moscou.
Em 2017, Kleiman
lançou pela editora Thames & Hudson o mais completo álbum dedicado à
faceta até então mais invisível da produção eisensteiniana, “Eisenstein
on Paper – Graphic Works by The Master of Film” (320 págs, 60 libras),
comentado quando de seu lançamento nesta coluna. A mostra paulistana
apresenta agora um pequeno, mas valioso recorte, contextualizado
sobretudo por pontuais projeções de alguns de seus principais filmes e
por referências artísticas inspiradoras para a eclética produção e
reflexão do artista soviético.
O
título da exposição aponta para a vasta cultura cosmopolita manejada
por Eisenstein em todos os campos. Eis a influência da commedia
dell’arte renascentista em seus primeiros passos, ainda no teatro, como
cenógrafo e figurinista nos primeiros, féericos anos da cultura
soviética; eis o impacto da cultura japonesa, do kabuki às gravuras
clássicas de Utagawa Hiroshige (1797-1858), como alíás em Van Gogh
(1853-1890), do ritmo fílmico à composição dos enquadramentos; eis a
inspiração no estatutário mitológico das culturas originárias mexicanas,
como os astecas e olmecas, durante a transformadora e frustrante
jornada para rodar o inacabado “Que Viva México” (1932).
Um
dos acertos da curadoria reside em demolir a impressão de que a
produção gráfica de Eisenstein teria sido meramente instrumental, como
que estudos e “storyboards” para montagens teatrais e filmes, realizados
ou tão somente planejados. É esta inequivocamente a origem de parte
dela, como bem ilustram as sequências projetadas em cinco telas da
mostra, do pioneiro curta “Diário de Glumov” (1923) ao testamento
fílmico de “Ivan, O Terrível” (1944/1958). Mas há dimensões no
pensamento e na criação de Eisenstein desenvolvidas em desenhos como em
nenhuma outra forma, notadamente em torno de Eros e Thanatos.
Em
embate constante, ao menos desde a finalização de “Outubro” (1927), com
os estreitos limites estéticos impostos ao cinema (como às demais
artes) pelo Estado soviético, Serguei Eisenstein gozou de plena
liberdade, da infância até seu último descanso, sobretudo com lápis ou
pincel e papel nas mãos. A afirmação da autonomia estética dos
desenhos, esquetes, caricaturas e cartuns de Eisenstein expande ao
visitar-se a mostra a compreensão de seu gênio para além do cinema.
Naum
Kleiman foi certeiro ao concluir sua apresentação para “Eisenstein on
Paper”: “Desenhar se tornou a forma mais soberana e sincera de sua arte
criativa: tornou-se seu jogo de importância vital. E é por esta mesma
razão que os desenhos de Eisenstein afirmam-se sem qualquer comparação
obrigatória -mesmo a comparação com seus próprios princípios como
diretor de cinema ou suas concepções como teórico”.
No
prefácio ao livro, Martin Scorsese frisava como o volume “dá vida ao
artista e à sua imaginação visual de uma maneira toda nova”. A sensação é
igual após uma visita a “Serguei Eisenstein e O Mundo”. Os olhos de
Eisenstein, como os nossos, não parecem mais os mesmos.