Por Amir Labaki
Dois documentários sobre
cotidianos de trauma, ambos com personagens femininos ao centro e
realizados por diretoras de reconhecimento crescente, venceram as
mostras competitivas de longas-metragens do 28º É Tudo Verdade no último
final de semana. A disputa brasileira premiou “Incompatível com a
Vida”, de Eliza Capai, e a internacional, “Confiança Total”, um
coprodução sino-germano-holandesa dirigido pela chinesa baseada nos EUA
Jialing Zhang.
Em “Incompatível com A Vida”,
Capai partilha o próprio luto, dela e de seu companheiro, pela
interrupção da gravidez, devido à má formação fetal, com outras mulheres
e parceiros que sofreram processos semelhantes. Sua narrativa em
primeira pessoa, da alegria da gestação à dor do aborto, imanta com uma
poderosa cumplicidade na agonia os depoimentos corajosos sobre o trauma,
agravado pelos entraves legais à interrupção gestacional.
Ao desenvolver o documentário a
partir de seu sofrimento íntimo, Eliza Capai alcança inédita
dramaticidade em sua produção, anteriormente centrada na abordagem de
questões sociais, como o legado maldito das usinas hidrelétricas
brasileiras em “O Jabuti e A Anta” (2016) e a mobilização estudantil em
São Paulo em 2015 de “Espero Tua (Re)Volta” (2019). Seu cinema se
robustece ao chegar pela perspectiva privada a uma urgente causa
pública, a de uma radical revisão dos direitos reprodutivos no Brasil.
Em seu segundo longa-metragem,
“One Child Nation” (2019), codirigido por Nanfu Wang, Jialing Zhang
também radiografava outro tipo de política pública desumana, a da
limitação forçada pelo Estado chinês a uma criança por casal, vigente
por décadas e apenas recentemente relaxada. Em “Confiança Total”, seu
primeiro filme solo, rodado à distância com o apoio de uma equipe
técnica anônima, Jialing apresenta a China high-tech como um modelo de
ponta para a sociedade de controle orwelliano viabilizado por
instrumentos digitais de vigilância.
O filme acompanha a sensação
claustrofóbica de cerco a partir de três histórias de repressão a
militantes por direitos humanos, captados em seus desenvolvimentos no
calor da hora. Essa individualização dos casos empresta raízes locais
para um processo aterrorizantemente planetário.
É difícil assistir “Confiança
Total” sem lembrar de “Cidadãoquatro” (2014) de Laura Poitras, com as
denúncias de Edward Snowden sobre o programa de vigilância global da
Agência de Segurança Nacional dos EUA. São ambos documentários de
advertência, a partir de recortes sociais distintos frente ao espectro
da concretização tecnológica de um Grande Irmão.
Ambos os júris atribuíram menções
especiais nas competições de longas-metragens. Na disputa nacional, a
honra coube a “Morcego Negro”, de Chaim Litewski e Cleisson Vidal, uma
minuciosa e matizada biografia do empresário PC Farias (1945-1996),
personagem central da ascensão e queda da nefasta Presidência de
Fernando Collor de Mello (1990-1992). O destaque internacional
distinguiu “Pianoforte”, em que o jovem cineasta polonês Jakub Piatek
acompanha, com a densidade de personagens romanescos, os finalistas
internacionais da Competição Internacional Chopin de Piano, realizada a
cada cinco anos em Varsóvia.
Vencedor entre os curtas-metragens
internacionais, “Ptitsa” é uma espécie de conto autobiográfico
tchecoviano rodado durante o “lockdown” da pandemia num apartamento
dividido por mãe e filha em Kiev, Ucrânia. Alina Maksimenko, a filha
pintora estreando como cineasta, registra o cotidiano de imobilidade
forçada com a mãe, professora de piano. O fim planejado da coabitação
acentua a excepcionalidade do momento.
Por sua vez, premiado entre os
curtas brasileiros, “Mãri hi – A Árvore do Sonho”, do cineasta yanomami
Morzaniel Iramari, nos proporciona, como escreveram na justificativa os
jurados Ana Petta, José Geraldo Couto e Paulo Henrique Fontenelle, “um
olhar imersivo e poético no imaginário do povo yanomami e sua relação
com a natureza”. Imagine uma radicalização estilística das passagens
mais oníricas do belo “A Última Floresta” (2021), desenvolvido por Luiz
Bolognesi também em parceria com o xamã yanomami Davi Kopenawa, e não
ficará longe.
A única menção honrosa para curtas
foi atribuída a “Ferro’s Bar”, de Aline Assis, Fernanda Elias, Nayla
Guerra e Rita Quadros, que reconstitui com depoimentos e arquivos um
marco do movimento lésbico brasileiro, a partir de um protesto na São
Paulo do início dos anos 1980 contra a repressão ao periódico
ChanacomChana. Aos poucos, a história da militância pelos direitos
LBGTQIA+ vai finalmente construindo também entre nós uma filmografia
sólida.
Tudo somado, a premiação oficial
bem espelhou a pluralidade de estilos e vozes anunciada na abertura do É
Tudo Verdade 2023. Sim, o documentário continua em expansão.