Por Amir Labaki
Em
plena pandemia, com todas as restrições da triste hora e escassa
divulgação, estreou no Canal Curta um dos painéis mais reveladores e
variados da arte dos montadores de produções audiovisuais no Brasil, “Na
Ilha”, dirigido pelos também profissionais da edição Júlia Bernstein e
Vinícius Nascimento. Depois de uma campanha de financiamento coletivo,
no final do ano passado o documentário se tornou valioso volume, com o
subtítulo de “Conversas sobre Montagem Cinematográfica” (paraquedas, 314
págs, R$ 83,90).
Às duas dezenas de
entrevistados presentes nos poucos mais de 70 minutos do filme, aqui
comentado quando de sua estreia, somam-se agora mais seis montadores.
Tendo por co-autores, ao lado de Bernstein e Nascimento, o jornalista e
realizador Piero Sbragia e o pesquisador Bem Medeiros, o livro traz as
transcrições dos encontros, revistas para publicação pelos próprios
protagonistas.
Dois deles
infelizmente se despediram desde o lançamento do documentário: Máximo
Barro (1930-2020), formado nos anos 1950 e editor de 53 longas-metragens
entre comédias de Mazzaroppi como “As Aventuras de Pedro Malasartes”
(1960) e “A Margem” (1973), Ozualdo Candeias, e Vânia Debs (1950-2021),
montadora de filmes importantes do chamado cinema da Retomada como
“Baile Perfumado” (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, e “Durval
Discos” (2002), de Anna Muylaert, e professora da ECA-USP.
O
livro apresenta as conversas segundo a ordem alfabética dos montadores,
com cada encontro estendendo-se em média por doze páginas impressas, em
texto corrido, omitidas as perguntas de Bernstein e Nascimento. A pauta
segue de maneira expandida a estrutura presente no filme, com breves
introduções autobiográficas, bastidores dos principais trabalhos e
reflexões sobre a arte e a técnica da edição audiovisual.
A
seleção de personagens forma um arco desde o cinema industrial paulista
dos anos 1950 (Barro) e o Cinema Novo (Eduardo Escorel) até a novíssima
produção brasileira (Fred Benevides, Natara Ney, Renato Vallone). O
equilíbrio de gênero foi quase alcançado, com dez montadoras e dezesseis
editores.
Independentemente da
geração, dois traços comuns são a formação em sua maioria autodidata e o
trabalho tanto em documentários como em ficções. Uma inspiração central
à maior parte das discussões, explícita ou implicitamente, são os
escritos do cineasta russo Andrei Tarkóvski (1932-1986) sobre a
importância essencial do “material bruto” registrado durante as
filmagens.
“O material bruto é
soberano”, argumenta Karen Akerman (O Processo). “Desde a ideia do filme
até as decisões que dão forma à ideia, tudo está impresso no material
bruto”, sustenta Escorel. Complementa Alberto Tupã Ra’y (Guardiões da
Memória), montador da etnia Guarani Nhandewa: “Eu já vou montando na
minha cabeça a imagem que quero, depois só vou atrás do material bruto
para poder casar com o que pensei”.
Não
há, contudo, consenso quanto à radical afirmação de Tarkóvski sobre
existir apenas um único filme a ser “esculpido” a partir do material
bruto. Quito Ribeiro (M8 – Quando A Morte Socorre A Vida) concorda com o
diretor de “Stalker” (1979): “só existe um filme e a gente vai chegar
nele”.
“Acho que não”, rebate Karen
Harley (Viajo Quando Preciso, Volto Porque Te Amo). “Principalmente em
documentários, existem pelo menos duas versões completamente diferentes.
Depende muito de que partido você quer tomar diante do material”.
“Às
vezes, eu acho que o material não tem a essência dele”, testemunha
Jordana Berg (Canções; Cine Marrocos). “Ele é um ponto de partida e você
tem que injetar novas coisas nele, para ele poder falar”.
Para
Daniel Rezende (Cidade de Deus), “o montador é um grande tradutor, tem
que ouvir o que o diretor quer atingir e tentar traduzir o que ele falou
para o material filmado”. Isabela Monteira de Castro (Madame Satã) e
Joana Collier (Juízo) coincidem em outra comparação: o editor é “um
pouco como psicanalista do filme”.
“Na
Ilha” é pontuada ainda por deliciosas histórias de processos de
realização de clássicos contemporâneos. Minhas prediletas trazem o
desenvolvimento do clássico curta “Ilha das Flores” (1989), segundo Giba
Assis Brasil, e dos documentários “O Prisioneiro da Grade de Ferro”
(2003), contada por Idê Lacreta, e “Jogo de Cena” (2007), por Jordana
Berg.
Para não me restringir apenas a
elogios, o livro teria sido enriquecido se trouxesse a filmografia de
cada montador, para além dos três singelos títulos publicado na abertura
de cada conversa, e se auxiliasse a consulta com o sempre útil índice
onomástico. Não faltará oportunidade em futuras reedições, pois “Na
Ilha” veio para ficar.