Por Amir Labaki
A
marcante participação brasileira na 35ª edição do Festival
Internacional de Documentários de Amsterdã, o IDFA, encerrado no último
domingo, foi coroada pela atribuição a “Filme Particular”, de Janaína
Nagata, do Beeld en Geluid IDFA ReFrame Award, destinado ao mais
criativo uso de material de arquivo por um documentário. A dimensão do
reconhecimento, que não pude acompanhar pessoalmente devido a uma
infecção por covid, torna-se ainda mais clara ao encontrar entre os
concorrentes obras de Isabel Coixet (The Yellow Celling), Mark Cousins
(The March on Rome, menção especial) e Sergei Loznitsa (The Natural
History of Destruction).
O
texto de justificativa da premiação pelo júri a explica “(p)or combinar
imagens antigas e novas tecnologias em uma jornada única, onde o privado
se torna público, e por abordar a complexidade do racismo de forma
exploratória, permitindo ao espectador a experiência ativa de pesquisa e
reconstrução, tornando-a divertida e emocionante”. Eram jurados a
documentarista argentina María Álvarez, o curador dinamarquês Niklas
Engstrøm e a acadêmica búlgara, sediada na Escócia, Dina Iordanova.
“Imagens
antigas”: um “filme particular”, “silencioso e de origem desconhecida”,
na bitola de 16mm, já previamente montado, adquirido pela realizadora
em 2018 para testar o um projetor. “Novas tecnologias”: Nagata investiga
a localização e os personagens presentes na filmagem por meio de uma
pesquisa usando ferramentas da internet, como o Google, Wikipedia e
YouTube, explicitando o processo ao dividir a tela entre o “filme
particular” e imagens e sons dos sites visitados (“a experiência ativa
de pesquisa e reconstrução”).
“O
privado se torna público” quando a investigação não progride no que diz
respeito à identificação do(s) cinegrafista(s) amador(es) por trás da
câmera e dos protagonistas daquela filmagem de viagem familiar, mas sim
revela muito sobre as locações e o período do registro. É a África do
Sul sob o regime do apartheid no começo dos anos 1960 -logo “a
complexidade do racismo”.
A
paciente pesquisa de Nagata descontrói aquelas misteriosas imagens
mudas, repletas de registros “exóticos” típicos dos “travelogues”. A
viagem se inicia pela Parque Nacional Kruger, uma reserva de caça
situada no nordeste da África do Sul, e prossegue para Durban, no
litoral do Oceano Índico, onde flagram o aquário local e os tradicionais
riquixás conduzidos por membros da etnia KwaZulu.
A
jornada da família burguesa branca continua pelo antigo bantustão do
Transquei, hoje república independente, região natal do líder
anti-apartheid, ex-presidente sul-africano e Prêmio Nobel da Paz Nelson
Mandela (1918-2013). Ali perto, em Mthatha, uma das filmagens reúne os
viajantes diante de um imponente edifício, o Bhungha, que sediou o
antigo parlamento do Tranquei e, desde 2000, abriga o Museu Nelson
Mandela. Nagata vai assim transformando o antigo filme num palimpsesto
que revela a evolução histórica da África do Sul.
Duas
personalidades essenciais do auge do cruel regime de segregação racial
do apartheid (1948-1994) destacam-se na parte final dos 19 minutos
iniciais do filme dissecados pela diretora. O principa deles é o então
primeiro-ministro Hendryk Verwoerd (1901-1966), considerado o “arquiteto
do apartheid’ e assassinado ainda no cargo.
Numa
entrevista on-line, Verwoerd defende o regime, classificando-o como
“melhor definido como uma política de boa vizinhança”. Uma das
sequências finais registra um grande banquete ao ar livre, monopolizado
pela elite branca sul-africana, liderado por Verwoerd.
Pouco
antes, o seu mais heterodoxo conselheiro surgira em uma de suas mansões
de Lusikisiki, ainda em Transkei. É o milionário “feiticeiro” bantu
Khotso Sethuntsa (1898-1972), cujos rituais assegurariam a seus adeptos
de riqueza e poder à renovada potência sexual.
“Divertida
e emocionante”, bem definiu o júri. Para o resultado, ressalte-se o
original trabalho sonoro de “Filme Particular”. Não há uma narração em
“off”, com as informações introdutórias sendo apresentadas por escritos e
os textos pesquisados on-line sendo ouvidos graças à leitura automática
habilitada pelas ferramentas. A atmosfera hipnótica deve muito à
“trilha sonora adicional” criada por Mariana Carvalho para as imagens
silenciosas.
Trabalhando a
partir de seu curta anterior (Sentinela), com “Filme Particular” a
estreante em longas-metragens Janaína Nagata dialoga de forma original
com os mais interessantes realizadores em atividade a partir de
materiais de arquivo, de Peter Forgácz a Sergei Loznitsa, de Eduardo
Escorel a João Moreira Salles. Para além das exibições já realizadas
neste ano em festivais e eventos brasileiros, seu documentário merece
alcançar um público mais amplo em salas e posteriormente em plataformas
de streaming. Nossa produção recente conheceu poucos títutos com tanto
frescor.