Por Amir Labaki
Quase simultaneamente dois novos documentários sobre Alfred Hitchcock
(1899-1980) fizeram suas estreias para os cinéfilos brasileiros. Não se
deixe confundir pela semelhança dos títulos. “Eu Sou Alfred Hitchcock”
(2021), uma produção canadense dirigida por Joel Ashton McCarthy, está
disponível na HBO MAX. “Meu Nome É Alfred Hitchcock” (2022), de ninguém
menos que Mark Cousins, passou por aqui na recém-encerrada 46ª Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo, logo depois de sua estreia mundial
no Festival de Telluride nos EUA.
Os títulos similares espelham o essencial ponto em comum entre os
filmes: ambos buscam apresentar visões globais do legado do diretor de
“Psicose” (1960). Distinguem-se, assim, dos enfoques mais pontuais de
outras produções não-ficcionais recentes, dedicadas a recortes precisos
da obra de Hitchcock.
As três mais interessantes me parecem ser “Hitchcock, Selznick e O
Fim de Hollywood” (1999), em que Michael Epstein detalhava a atribulada
relação entre o cineasta britânico e o lendário produtor americano que
lhe propiciou o início da carreira americana, “Hitchcock/Truffaut”
(2015), o ensaio fílmico de Kent Jones a respeito do fundamental livro
de entrevistas publicado em 1966, e “78/52” (2017), a brilhante
radiografia por Alexandre O. Philippe da sequência mais célebre da
filmografia do diretor -o assassinato no chuveiro de “Psicose”.
Não poderiam ser mais distintos os estilos dos filmes de McCarthy e
Cousins. “Eu Sou Alfred Hitchcock” se estrutura como um documentário
biográfico clássico, que revisita o percurso de Hitch a partir de
trechos de filmes, materiais de arquivo, entrevistas exclusivas e
trechos de antigos depoimentos, ambos sempre em vozes em “off”. “Meu
Nome É Alfred Hitchcock”, por sua vez, segue a linha ensaística das
análises cinematográficas da obra de Cousins, como seu recente “Os Olhos
de Orson Welles” (2018), com uma notável experimentação: não é a
própria voz de Cousins que nos guia, mas sim uma impressionante imitação
da voz de Hitchcock, pelo ator Alistair McGowan, que narra a original
releitura como se fora uma autorreflexão.
A abordagem de Cousins é essencialmente formalista. “Meu Nome é
Alfred Hitchcock” se divide em seis grandes partes, cruzando livremente a
filmografia de Hitch para debater elementos formais e temas a partir
dos seguintes eixos: fuga, desejo, solidão, tempo, satisfação e altura.
Já McCarthy busca de forma didática ilustrar como a vida e a obra de
Hitch mutuamente se iluminam. Para aspectos biográficos, se escora em
declarações inéditas ou de arquivo, com destaque para a filha, Patrícia,
e as netas do cineasta, Mary Stone e Tere Carribba, e de protagonistas
de seus filmes, como James Stewart, Janet Leigh, Kim Novak e Tippi
Hedren. As discussões a respeito da evolução de seu estilo
cinematográfico contam com contribuições originais de cineastas como
Alexandre O. Philippe, Eli Roth, Edgar Wright e John Landis e de falas
de arquivo de Martin Scorsese e Steven Spielberg.
Trechos certeiros de depoimentos do próprio Hitchcock oferecem alguns
dos vetores estéticos a partir dos quais McCarthy desenvolve seu filme.
“Acredito em colocar o terror na mente da audiência”, explicita logo no
começo Hitch. Pouco depois, numa frase, seu credo: “Conte a história
visivelmente e deixe a fala ser parte da atmosfera”.
Para Spielberg, “ele era absolutamente o mestre do suspense; logo, o
mestre da manipulação”. Seu filme predileto de Hitchcock é “Janela
Indiscreta” (1954). O de Scorsese é “Um Corpo Que Cai” (1958), que ele
admira não tanto pelo entrecho, mas pela força da obsessão do “Scottie”
de James Stewart. Segundo a neta Mary, dentre seus filmes o preferido
por Hitchcock seria “A Sombra de Uma Dúvida” (1943), com sua
desconstrução da paz provinciana da América profunda.
Se Cousins disseca mais finamente o tecido audiovisual dos pouco mais
de 50 longas-metragens de Hitchcock, louve-se McCarthy por também
abordar as críticas contemporâneas ao trato abusivo de algumas de suas
atrizes, Tippi Hedren à frente, e a contribuição por longo tempo
eclipsada da produtora e roteirista Joan Harrison (1907-1994). Parceira
na escrita de filmes da importância de “Rebecca, A Mulher Inesquecível”
(1940) e “Sabotador” (1942) e na criação e realização das pioneiras
telesséries “Alfred Hitchcock Apresenta” (1957-1962) e “The Alfred
Hitchcock Hour” (1962-1965), Harrison merece o crédito de segunda grande
colaboradora feminina do cineasta, atrás apenas de sua esposa,
assistente e também roteirista Alma Reville (1899-1982).
Contas feitas, cada qual a seu modo, McCarthy e Cousins reafirmam a
extraordinária potência de uma filmografia encerrada em tom menor há
quase meio século, com “Trama Macabra” (1976). Logo saberemos como a
situa a nova lista de maiores filmes da história segundo a votação de
críticos e cineastas organizada a cada década pela revista britânica
Sight & Sound. Em 2012, pela primeira vez Hitchcock a liderava, com
“Um Corpo Que Cai”.