Por Amir Labaki
Examinando os premiados no último
domingo pelos júris da 27ª edição do É Tudo Verdade, seriam
documentários aparentemente polares os vencedores da competição de
longas-metragens internacionais, “O Filme da Sacada”, do polonês Pawel
Lozisnki, e da disputa brasileira de longas, “Quando Falta o Ar”, de Ana
Petta e Helena Petta. Centrípeto, o primeiro registra, pré-pandemia, o
desfile cotidiano de pessoas comuns defronte à sacada do apartamento do
cineasta em Varsóvia. Centrífugo, o segundo sai pelo Brasil no auge da
pandemia, antes da decisiva chegada das vacinas contra covid-19,
acompanhando a atuação de profissionais do SUS (Sistema Único de Saúde)
no Nordeste, Norte e Sudeste do país.
Aparências contudo enganam. Em
primeiro lugar, os aproximam o foco cerrado sobre personagens comuns.
Estes são acompanhados pelo cineasta polonês em suas rotinas ao cruzar,
durante a passagem das estações, sua câmera e seu microfone instalados
em sua sacada. Sucedem-se eles também diante da equipe volante de
gravação das diretoras brasileiras, trabalhadores da saúde, de um lado,
moradores imobilizados e pacientes infectados, de outro.
Segundo: ambos filmes seguem com
extraordinário rigor seus dispositivos cinematográficos. Há algo da
ascese do cinema de conversa de Eduardo Coutinho no engajamento paciente
de Lozinski nas interações, por vezes breves, por vezes crescentemente
cúmplices em revisitas, com seus personagens. Já as irmãs Petta se valem
do registro a um só tempo ágil e intimista da escola do cinema direto
para captar diversas etapas da batalha contra a pandemia, seja nas
unidades móveis que cruzam águas ao Norte, na enfermeira que se exaure
numa bem-sucedida manobra de ressuscitação cardíaca numa UTI ou no longo
e trágico preparo do transporte seguro de uma vítima fatal.
“O Filme da Sacada” eterniza o
extraordinário das vidas anônimas. “Quando Falta o Ar” documenta, sem a
dramatização apressada de certos registros audiovisuais jornalísticos,
um momento a um só tempo macabro e heroico de um país que enfrentava a
pior pandemia num século sendo gerido pelo mais nefasto governo de nossa
República.
As menções honrosas aos longas
de ambos os júris guardam notável coerência com as premiações
principais. Na disputa internacional, também “Ultravioleta e a Gangue
das Cuspidoras de Sangue”, do francês Robin Hunzinger, distingue-se pela
originalidade de seu estilo, ao combinar ensaio de arquivo e narrativa
familiar (uma amizade de juventude avó do diretor). Por sua vez,
“Sinfonia de Um Homem Comum”, de José Joffily, denuncia sem espalhafato a
vilania das composições políticas, seja no tabuleiro global quanto no
nacional, que custou o egrégio posto de primeiro diretor-geral da
Organização de Proibição das Armas Químicas ao diplomata brasileiro José
Bustami, um pianista amador que se recusou a abrir mão de suas
convicções frente às pressões do governo George W. Bush para tocar uma
música conivente com a guerra americana no Iraque de 2003.
O revigoramento do documentário de
curta-metragem afirmou-se em duas das seleções estilisticamente mais
diversas da última década. Em “Como Se Mede um Ano?”, vencedor da
competição de curtas internacionais, o americano Jay Rosenblatt destila
de uma abordagem minimalista talvez o mais inesquecível filme de sua
vertente autobiográfica. Por mais de uma década e meia, Rosenblatt
filmou sua filha no dia de seu aniversário, da tenra infância à
juventude independente.
O longa “Anna dos 6 aos 18”
(1994), de Nikita Mikhalkov, lembrarão alguns. Distingue-os a ênfase
social do segundo e o foco psicológico de Rosenblatt. Por sua vez
merecedor de uma menção honrosa, em “Ali e Sua Ovelha Milagrosa”, o
cineasta iraquiano Maythem Ridha remete ao cinema híbrido entre ficção e
documentário do mestre iraniano Abbas Kiarostami ao confrontar os polos
de tradição e modernidade em seu tumultuado país enquanto um garoto o
percorre para respeitar o ritual do sacrifício de seu animal predileto.
Na competição nacional de curtas,
também chama a atenção a diversidade de registros entre as duas obras
destacadas pelo júri. O prêmio principal foi atribuído ao episódico
“Cantos de Um Livro Sagrado”, em que Cesar Gananian e Cassiana der
Haroutiounian apresentam cinco chaves para interpretar a chamada
Revolução de Veludo da Armênia de 2018. Já Esther Vital recorreu ao
documentário de animação, inspirado por tapeçarias de resistência à
ditadura chilena, para reconstituir o “desaparecimento” durante o regime
militar brasileiro da diretora de teatro Heleny Guariba (1941-1971),
conquistando uma menção honrosa para o tocante “Cadê Heleny?”. Nunca
antes tantas cineastas haviam sido premiadas pelo festival.
Prêmios à parte, a 27ª edição do É
Tudo Verdade, ainda de forma híbrida, consagrou o reencontro ritual em
salas, depois de dois anos de pandemia, do público com as equipes da
nova safra documental brasileira. Tomara se torne um marco também do
retorno seguro e definitivo dos espectadores aos cinemas.