Por Amir Labaki
Em quase meio século de atividade como diretor de cinema, Stanley Kubrick (1928-1999) realizou três documentários de curta-metragem e treze longas-metragens ficcionais. “Kubrick, Uma Odisséia”, de Robert P. Kolker e Nathan Abrams (Belas-Letras, 688 págs, R$ 169,90) chega agora ao Brasil, apenas um ano após seu lançamento nos EUA, reconstituindo minuciosamente sua vida e carreira, a parte visível e algo da invisível, esta sobretudo em torno dos projetos mais desenvolvidos de filmes que infelizmente não foram por ele concretizados.
Na extensa bibliografia dedicada ao diretor de “2001, Uma Odisseia no Espaço” (1968), o livro de Kolker e Abrams, que para ela já haviam anteriormente contribuído, só encontra paralelo na biografia publicada há quase um quarto de século por Vincent LoBrutto. “Stanley Kubrick: A Biography” (Donald I. Fine Books, 1997, 580 págs., US$ 29,95, inédita no Brasil) foi pioneira em radiografar de forma extensa a formação do cineasta, mas sua publicação cerca de dois anos antes da morte de Kubrick, a desfalca, naturalmente, quanto à precoce despedida do diretor em 1999 e ao lançamento de seu último filme, “De Olhos Bem Fechados”.
Além de retratá-lo do berço ao túmulo, e ao extraordinário reconhecimento póstumo, público e crítico, o novo volume conta com o incrível reforço documental do acesso aos arquivos Kubrick depositados na Universidade das Artes de Londres. Kolker e Abrams conseguem assim datar em meados dos anos 1950 o início do fascínio kubrickiano por “Breve Romance de Sonho”, de Arthur Schnitzler, a novela onírica sobre sexo, adultério e morte que, quatro décadas mais tarde, transposta para uma Nova York contemporânea recriada em estúdios e estrelada por Tom Cruise e Nicole Kidman, inspiraria seu filme póstumo.
O detalhamento das dezenas de projetos jamais efetivamente produzidos pelo cineasta enriquece, a partir do mergulho nos arquivos, “Kubrick, Uma Odisséia”. Foram quatro os mais desenvolvidos: “The Burning Secret”, adaptado da novela “Segredo Ardente” de Stefan Zweig; “Napoleon”, um épico sobre o gênio militar e imperador francês; “Aryan Papers”, uma versão do romance “Infância de Mentira”, de Louis Begley; e “A.I.”, desenvolvido do conto “Superbrinquedos Duram o Verão Todo” de Brian Aldiss.
Representando Zweig e Schnitzler dois dos principais ficcionistas da vida sentimental da burguesia vienense da virada do século XIX para o XX, foi um pulo a transferência do interesse de Kubrick de “Breve Romance de um Sonho” para “Segredo Ardente”, novelas primas em torno de enredos de sedução e infidelidade. Na trama de Zweig, durante uma viagem de férias, um pré-adolescente suspeita que um barão dele se aproximou com o intuito de seduzir sua mãe. Com um roteiro adaptado pelo escritor americano Calder Willingham, o projeto que sucederia o policial noir “O Grande Golpe” (1956) na filmografia de Kubrick foi à última hora cancelado pela MGM, abrindo vez para inaugurar sua parceria com Kirk Douglas em “Glória Feita de Sangue” (1957).
“Napoleon” foi dos filmes não-realizados o mais extensamente preparado e a maior frustração da carreira do cineasta. Planejado para suceder “2001”, seu desenvolvimento o levou a reunir e ler uma extensa bibliografia sobre o estadista francês; a contratar, como consultor do roteiro inicial escrito por ele mesmo, um dos biógrafos de Bonaparte, Felix Markham; a encomendar novos e extensos levantamentos fotográficos de possíveis locações na França, Itália, Espanha e Iugoslávia; e muito mais. Aquele que Kubrick definiu como “poema épico de ação”, contudo, teve a produção cancelada por uma alquebrada MGM.
Nascido numa família de classe média alta de origem judaico-ucraniana no Bronx, Nova York, Kubrick não teve uma formação religiosa. Ecos subliminares em seus filmes desta identidade judaico-novaiorquina foram analisados pioneiramente em livro por Nathan Abrams (Rutgers University Press, 2018) e marcam assim a nova biografia, da qual é um dos coautores. Lida como uma das chaves para os vários projetos que o cineasta desenvolveu em torno da Segunda Guerra e do Holocausto, essa identidade teria encontrado sua melhor tradução em “Aryan Papers”.
No início de 1991, Kubrick leu em primeira mão as provas do semiautobiográfico “Infância da Mentira”, de Begley, sobre um garoto judeu que se faz passar por católico para sobreviver na Polônia ocupada pela Alemanha nazista. A Warner adquiriu os direitos, ele mesmo escreveu o roteiro (pela primeira vez desde “Napoleão”), locações foram escolhidas na República Checa e na Eslováquia e tudo parecia pronto para filmar quando, em novembro de 1993, a produção foi suspensa.
O motivo, segundo Kubrick e o estúdio: a estreia prévia de “A Lista de Schindler” (1993), de Steven Spielberg. Ou também, como argumentam Kolker e Abrams, “talvez Kubrick não realizou seu filme sobre o Holocausto pois referências diretas a judeus eram necessárias, algo que ele propositalmente evitou ao longo de sua carreira cinematográfica”.
Não se imagine, contudo, qualquer animosidade entre Kubrick e Spielberg, amigos em constante contato sobretudo telefônico, um em Hertfordshire (sul da Inglaterra), o outro em Los Angeles, desde fins dos anos 1970. Ao menos desde 1984 um dos assuntos era “A.I.: Inteligência Artificial”.
Kubrick se interessou em adaptar o conto, sobre o impacto da adoção de uma criança robô num futuro algo distópico, desde que conhecera Aldiss em 1975. Por dúvidas quanto ao roteiro e as exigências em efeitos especiais, foi postergando o projeto. Em 1995, enquanto se preparava para rodar “De Olhos Bem Fechados”, chegou a propor a Spielberg, com quem discutia regularmente as idas e vindas, que o dirigisse e assumisse ele apenas a produção.
Nada foi fechado e “A.I.” bem poderia ter sido o 14º filme de Stanley Kubrick, seu “Pinóquio” futurista. A morte o visitou e coube ao diretor de “E.T., O Extraterrestre” finalmente levá-lo às telas. É uma bela e nobre homenagem ter sido lançado precisamente em 2001.