Por Amir Labaki
O ciclo “50 Anos Depois”, pelo quarto ano consecutivo, destaca-se entre as curadorias especiais da Cinemateca Brasileira, exibindo entre os dias 7 e 17 deste mês 44 produções brasileiras e internacionais lançadas em 1975. A partir da seleção cuidada do cineasta Paulo Sacramento, o diálogo entre os títulos nacionais e estrangeiros remete à reflexão publicada há quase precisamente meio século por Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977) num de seus últimos artigos para a revista alternativa Movimento: “O exame atento do cinema brasileiro é sempre compensador”.
Os 20 longas-metragens internacionais retratam um período de frescor criativo, ainda dentro e para muito além de Hollywood. Sim, é o ano de “Tubarão”, de Steven Spielberg, um dos marcos pioneiros da ainda corrente era dos “blockbusters” (ausente do programa), mas ainda havia oxigênio para a marcante renovação por cineastas independentes iniciada, grosso modo, em 1967, como argumentou Mark Harris. Eis assim “Um Dia de Cão”, de Sidney Lumet, e “Um Estranho no Ninho”, de Milos Forman, e “Nashville”, o mais essencial dos filmes de Robert Altman.
Por sua vez. o cinema de arte mundo afora saudava a eclosão de diretoras de impacto duradouro, da belga Chantal Akerman de “Jeanne Dielman” à húngara Márta Mészáros de “Adoção” como a reafirmação da vitalidade de cineastas consagrados, sem embargo de dificuldades produtivas específicas: os italianos Michelangelo Antonioni, rodando nos EUA “Profissão: Repórter”, Pier Paolo Pasolini e seu virtual testamento fílmico em “Saló ou os 120 Dias de Sodoma”, o japonês Akira Kurosawa, numa experiência cosmopolita com “Dersu Uzala” na então URSS, o russo Andrei Tarkovski mergulhando em tons autobiográficos em “O Espelho”.
Os 15 longas e 9 curtas-metragens brasileiros abrem uma brecha na interpretação hegemônica de um cinema brasileiro em lua de mel com certo sucesso mercadológico dos anos áureos do binômio Embrafilme/Boca do Lixo. Nas 77 produções nacionais que entraram no robusto circuito de salas da época (mais de 3000), segundo levantamento da revista Filme Cultura, é inegável o predomínio do vetor popular, como as chanchadas eróticas, bem representadas no ciclo por “Cada Um Dá O Que Tem”, de Adriano Stuart, John Herbert e Sílvio de Abreu, e, infelizmente ausentes do ciclo, dos campeões nacionais de bilheteria da safra, “Jeca Contra o Capeta”, de Pior Zamuner e Amácio Mazzaropi, e “O Trapalhão na Ilha do Tesouro”, de J. B. Tanko, ambos com mais de 3 milhões de espectadores.
É notável, naquele contexto, a entrada ou afirmação em cena de novos olhares fílmicos independentes. Não é um ano qualquer o que recebe “Lição de Amor”, a austera adaptação de Mário de Andrade por Eduardo Escorel, “Lilian M – Relatório Confidencial”, o primeiro Carlos Reichenbach mais visceral, e “O Rei da Noite”, de Hector Babenco. Tampouco o das confirmações de Arnaldo Jabor com “O Casamento”, de Júlio Bressane e “O Monstro Caraíba”, para não falar de “O Desejo” de Walter Hugo Khouri.
Um longuíssimo caminho ainda havia a ser trilhado para a ruptura do “clube do Bolinha” e afirmação das mulheres na direção, mas o ciclo destaca as contribuições pioneiras da época, com “Cristais de Sangue”, de Luna Alkalay, Tânia Quaresma e um então raro documentário de longa-metragem, “Nordesde: Cordel, Repente, Canção” (em nova cópia), Teresa Trautman com um dos episódios de “Deliciosas Traições de Amor”, ao lado de Domingos de Oliveira e Phydias Barbosa.
Por falar em documentários, a seleção ainda que pontual permite atentar para dinâmicas distintas entre os cenários internacional e brasileiro. A reformulação estética e mercadológica que marcaria uma primeira grande era de documentários de longa-metragem, sobretudo a partir do início dos anos 1990, já saudava seus pioneiros -e com incontornável impacto: nos EUA, nada menos que “Grey Gardens” dos irmãos Mayles, Ellen Hovde e Muffy Meyer, e “Welfare”, um dos pontos de partida do imenso mosaico americano de Frederick Wiseman. Por sua vez, a primeira parte da trilogia “A Batalha do Chile”, de Patrício Guzmán, expandia desde o exílio o documentarismo político, na mais cinza das horas.
No Brasil, por sua vez, se o documentário de longa-metragem ainda não vingara, o curta-metragem enraizado na não ficção se reafirmava como esteio histórico e zona livre de invenção fílmica. Quanto cinema pulsa em “Ecos Caóticos”, de Jairo Ferreira, e “Tarumã”, de Mário Kuperman, “um filme espantado” como cravou Jean-Claude Bernardet, quando “um cineasta tenta fazer com que (um)a mulher se apodere do filme e o torne seu próprio veículo de expressão”. Talvez a melhor chave de entrada para 1975 – 50 Anos Depois” seja mesmo ver e ouvir Paulo Emílio em “Tem Coca-Cola no Vatapá”, de Rogério Correa e Pedro Farkas.