Por Amir Labaki
Assim como o fetiche por listas, um novo jogo entretém entre filmes os cinéfilos: o do “grande ano” da produção cinematográfica mundial. A mesma revista britânica que desencadeou a febre das listas nos idos de 1952, a Sight and Sound publicada pelo British Film Institute (BFI), aposta agora, em seu mais recente número (Summer 2025), num marco decisivo para a história contemporânea do cinema. Sua capa é inteiramente tomada pela chamada para o dossiê central: “1975! The Year That Changed Cinema Forever” (1975! O Ano Que Mudou o Cinema Para Sempre).
Cravando 1975 como “um ‘annus mirabilis’ no cinema”, o texto de apresentação do dossiê destaca dois filmes como decisivos para a classificação: “Tubarão”, de Steven Spielberg, e “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, de Chantal Akerman. “A extensão dos títulos – um, um evocativo vislumbre de dentes, o outro, o nome e endereço completo de uma mulher – conta uma história por si só. Entre esses dois filmes, ambos lançados em 1975, todo o restante do cinema se encontra, um espectro entre agressividade e euforia, de um lado, e duração e repetição, do outro”.
“Um reinventou Hollywood à sua imagem, gerando cinco décadas de sucessos de blockbusters de verão; o outro, um desafio às noções preconcebidas do cinema, agora é coroado o Melhor Filme de Todos os Tempos pela pesquisa da Sight and Sound”, prossegue a apresentação. “Só esses dois títulos já tornariam 1975 digno do título que esta edição lhe confere: ‘O ano que mudou o cinema para sempre’; adicione clássicos de Andrei Tarkovski, Pier Paolo Pasolini, Ousmane Sembène, Marguerite Duras, Stanley Kubrick e Agnès Varda, entre outros, e as razões parecem avassaladoras”. Os clássicos dos cineastas citados são “O Espelho”, “Saló, ou Os 120 Dias de Sodoma”, “Xala”, “Índia Song”, “Barry Lyndon” e o documentário “Daguerreótipos”.
Nas 55 páginas do dossiê, outros 25 títulos são referidos para sustentar o argumento, entre os quais o épico engajado “Crônica dos Anos de Fogo”, do argelino Mohammed Lakhdar-Hamina, vencedor da Palma de Ouro em Cannes naquele ano; “Dersu Uzala”, de Akira Kurosawa; “O Enigma de Kasper Hauser”, de Werner Herzog; “O Homem Que Queria Ser Rei”, de John Huston; “Nashville”, de Robert Altman; “Profissão: Repórter”, de Michelangelo Antonioni, e os musicais “The Rocky Horror Picture Show”, de Jim Sharman, e “Tommy”, de Ken Russell. Entre os documentários, “A Batalha do Chile – Parte 1”, do chileno Patricio Guzmán, “Grey Gardens”, de Albert e David Maysles, Ellen Hovde e Muffie Meyer, e “Welfare”, de Frederick Wiseman.
Escrevendo em louvor de Al Pacino como o líder de um assalto a banco no Brooklyn novaiorquino em “Um Dia de Cão”, de Sidney Lumet, “o papel mais cativantemente característico de Al”, o grande David Thomson, um dos papas da crítica e história do cinema (A Biographical Dictionary of Film, 1975, nova edição em 2014, inédito aqui), parece engrossar o coro da “fixação deste número com 1975”, afirmando: “se você hesita em se entusiasmar com 1975, lembre-se apenas de que os indicados a melhor filme (ao Oscar) eram ‘Barry Lyndon’, ‘Um Dia de Cão’, ‘Tubarão’, ‘Nashville’ e o vitorioso ‘Um Estranho no Ninho’ (de Milos Forman). Era uma época para estar vivo”.
Há, contudo, uma sutil, mas inegável diferença entre “se entusiasmar” com uma safra (ok, concordemos) e sustentá-la como aquela “que mudou o cinema para sempre”.
Voltemos à dupla polar de títulos central à classificação pela Sight and Sound. “Tubarão” foi de fato pioneiro no estabelecimento pelos estúdios do estabelecimento dos chamados “blockbusters”, inovando com a distribuição simultânea num maior número de salas (mais de 400, inusual para o período) e a intensa publicidade em televisão (também até então incomum). Por sua vez, “Jeanne Dielman”, com seus 200 minutos focados no cotidiano de uma mulher solitária (sem ‘spoilers’), realmente “cultivava e transformava em arma aquilo a que o jovem Steven Spielberg era congenitamente alérgico - tédio deliberado e confrontacional - ao serviço de um tipo diferente de horror visceral”, nas palavras na introdução de Adam Nayman.
Cabe argumentar, porém, que o modelo efetivo do “blockbuster” contemporâneo estreou dois anos depois de “Tubarão”: “Guerra nas Estrelas” (1977), de George Lucas. Chantal Akerman em “Jeanne Dielman”, por seu turno, elevava sim a nova patamar uma narrativa fílmica feminista, mas com precursoras como Agnès Varda e Marguerite Duras (para ficar em apenas dois nomes). E, se tomarmos como Thomson a disputa pelo Oscar como parâmetro, como não a contrapor em impacto e simbolismo à de 1967, entre “Bonnie e Clyde”, “O Fantástico Doutor Doolitle”, “A Primeira Noite de um Homem”, “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” e “No Calor da Noite”, radiografada por Mark Harris em “Cenas De Uma Revolução: O Nascimento da Nova Hollywood” (L&PM, 2011)?
Em suma, 1975 foi mesmo de arromba, como em agosto próximo na Cinemateca Brasileira a mostra anual “50 Anos Depois” do curador Paulo Sacramento comprovará. Reservo, porém, minhas dúvidas em estabelecê-lo como um marco revolucionário que “mudou o cinema para sempre”. E, sem querer implicar demais com David Thomson, era sim uma época para viver -diante das telas.