Por Amir Labaki
O mais importante festival dedicado ao cinema de patrimônio inicia-se em Bolonha neste sábado, dia 21, levando até o domingo, 28, a cinéfilos italianos e internacionais em visita, uma maratona sem paralelos de retrospectivas, clássicos e filmes restaurados, para não falar de eventos paralelos como encontros, prêmios e exibições de artes visuais em torno da sétima arte -uma expressão que lá se faz rediviva há 39 edições. Há na apresentação do catálogo, já disponível on-line, uma declaração de princípios de raro impacto, que creio justificar a longa citação.
“Este é o Il Cinema Ritrovato: um lugar para descobrir que o cinema é muito mais do que imaginávamos, que o patrimônio cinematográfico é um continente infinito de conexões secretas entre autores e cineastas que muitas vezes nunca se conheceram, uma terra livre na qual você pode facilmente encontrar descobertas surpreendentes, que revelam a beleza e o horror dos quais somos capazes”, escrevem os codiretores Cecilia Cenciarelli, Gian Luca Farinelli, Ehsan Khoshbakht, Mariann Lewinsky. E prosseguem: “Este ano, como nunca antes, a programação questiona quem somos, quem queremos ser e de que lado estamos. Todas essas imagens que brotam do passado nos perguntam que tipo de mundo queremos para o nosso futuro e o de nossos filhos. O Il Cinema Ritrovato não é um cemitério de filmes antigos, mas o encontro ativo entre um público moderno e a obra do passado para garantir que a vida e a obra de tantos artistas não tenham sido em vão”.
Divididas em três seções (O paraíso dos cinéfilos, A máquina do tempo, A máquina do espaço), as 16 mostras confirmam com contundência a carta de intenções. Retrospectivas inéditas de cineastas e intérpretes, célebres e ainda nem tanto, por certo, uma extensa seleção de filmes restaurados pelo mundo todo, sem dúvida, e destaque para a produção feminina (o primeiro foco num cineasta em atividade destaca a francesa Coline Serreau, de “Três Homens e Um Bebê), clássicos ucranianos (filmes da era soviética inspirados no escritor judeu de Odessa Isaac Babel), iranianos (o censurado O Carteiro, 1972, de Dariush Mehrjui, assassinado com sua mulher em casa num crime ainda nebuloso desde outubro de 2023), e sobre a Palestina (Procurando Locações na Palestina, 1965, de Pier Paolo Pasolini), além de toda uma mostra (Cinemalibero) focada em títulos essenciais realizados nas “periferias dos sistemas dominantes de produção e distribuição”.
Ë nobre a dupla presença brasileira neste ciclo: “São Paulo, Sociedade Anônima” (1965), de Luiz Sérgio Person, e “Uirá, Um Índio Em Busca de Deus” (1973), adaptado por Gustavo Dahl do romance de Darcy Ribeiro. Perdoe-se à curadora Cecilia Cenciarelli equivocadamente classificar no catálogo o clássico paulistano de Person como “umaobra fundamental, embora muitas vezes subestimada, do Cinema Novo” (Person, como Walter Hugo Khouri, para ficar em apenas mais um exemplo, nada tem a ver com o movimento). Muito mais feliz é a certeira escolha, para apresentar “Uirá”, de um texto de Glauber Rocha: “uma cosmogonia rara em nosso cinema, é um filme estruturado em planos médios, segundo os ritmos de uma síntese produzida pela montagem dialética de humanistas como Rosselini e Bresson e de materialistas históricos como Brecht”.
O cinema latino-americano tem outro destaque no mesmo Cinemalibero com “La Paga” (1962), censurada coprodução colombiana-venezuela dirigida por Ciro Durán, bem definida por seu filho Vladimir como “uma obra pioneira do cinema social e político latino-americano, lançada em 1962 – mesmo ano da estreia de Glauber Rocha, ‘Barravento’ – e que antecipa movimentos como o Terceiro Cinema de Getino e Solanas”. A produção mexicana também surge bem-representada em outras mostras, com dois títulos restaurados de Paul Leduc (Reed, México Insurgente, 1973, Frida, Natureza Viva, 1985) e um ciclo de produções em 16 mm rodadas durante um longo período entre 1961 e 1984.
As curadorias das retrospectivas combinam o tradicional toque de frescor, cosmopolitismo e senso de oportunidade. Celebrada pela foto no poster do ano em“Boêmio Encantador” (1938) de George Cukor, Katharine Hepburn ganha um ciclo sob os cuidados da crítica americana Molly Haskell. Com curadoria de Ehsan Khoshbakht, “Lewis Milestone -De Guerras e Homens” destaca como, apesar de o cineasta judeu russo emigrado ter “um dos estilos mais distintos e ecléticos de sua geração” (Sem Novidade no Front, 1930, Venturoso Vagabundo, 1933), sua carreira, iniciada ainda na era silenciosa, veio abaixo a partir da cruzada macartista dos anos 1950.
Há muito mais: uma visão ampliada da paleta do italiano Luigi Comencini para além dos filmes com crianças (É Proibido Roubar, 1948) e das popularíssimas comédias (Pão, Amor e Fantasia, 1953); o desconhecido período logo anterior à Segunda Guerra de Mikio Naruse, um dos quatro grandes do cinema japonês clássico (ao lado de Kurosawa, Mizoguchi e Ozu); um tributo ao melômano diretor austríaco Willi Forst (Quatro Mulheres É Demais, 1939); e, na subestimada escola escandinava de cinema noir dos anos 1940-50, enfocada em “Norden Noir”, as raízes da soberba produção de séries da região na era do streaming (The Killing; A Ponte).
Em “Documentos e Documentários”, por sua vez, eis novos retratos de cineastas como Buster Keaton, Stanley Kubrick, David Lynch, Marta Mészàros e Serguei Paradjanov, assim como da diretora de produção italiana Mara Blasetti. Já a mostra “Pequeno Grande Passo: De Canções e Sociedade” frisa meio século de inconformismo nos documentários musicais, como “Festival” (1967) de Murray Lerner, e “O Declínio da Civilização Americana” (1981), de Penelope Spheeris.
É tudo nostalgia? Pense melhor. A equipe por trás de Il Cinema Ritrovato abriu em Bolonha uma sala de projeção, o Moderníssimo, com mais de 300 lugares, especificamente para o cinema de patrimônio. Em seus primeiros doze meses de funcionamento, apenas com programas de filmes da história do cinema, sem qualquer lançamento do ano, foi a sala com uma única tela que mais vendeu ingressos em toda a Itália. E há ainda quem fale em filmes antigos.