Por Amir Labaki
Com a morte em 24 de maio passado de Marcel Ophuls (1927-2025), o documentário perdeu um de seus cineastas mais originais, inquisidores e influentes. Sua obra maior foi a “A Tristeza e a Piedade – Crônica de Uma Cidade Francesa Sob Ocupação” (1969), que alterou para sempre a autoimagem dos franceses sobre a extensão do colaboracionismo durante o controle militar nazista. A mais popular deve-se ao Oscar de melhor documentário de 1989 atribuído a “Klaus Barbie, Sua Vida e Seu Tempo (1988), sobre o carrasco nazi conhecido como “açougueiro de Lyon”.
Ophuls tinha, contudo, predileção por “A Memória da Justiça” (1976), “meu melhor filme, creio, em todo caso, o mais pessoal”. Em cerca de quatro horas e meia, mergulha-se numa intricada discussão sobre limites da justiça, responsabilidade pessoal e horrores da guerra a partir principalmente de um paralelo entre as atrocidades nazistas, a partir de um minucioso exame do julgamento de Nuremberg (1945-46), e a crueldade americana na Guerra do Vietnã.
Judeu alemão de nascimento, francês por adoção, algo americano por formação, acompanhando o exílio paterno em Hollywood em fuga do nazismo, Marcel era filho do grande Max Ophuls (1902-1957), diretor de clássicos como “Desejos Proibidos” (1953) e “Lola Montès” (1955). Não hesitava em classificar o pai como “gênio” e intitulou sua autobiografia “Mémoires d’um Fils à Papa” (Calmann-Lévy, 2014, inédita no Brasil), memórias de um filhinho de papai.
“Max par Marcel” (2009), seu penúltimo filme, reconstituí-lhe amorosamente a vida e os pontos alto da obra, a partir de trechos de filmes, de suas próprias lembranças e as de protagonistas como Daniele Darrieux e Martine Carol. Como não poderia deixar de ser, o fascínio paterno marca também a revisita de sua própria trajetória no documentário final, “The Voyageur” (2013).
Depois de iniciar-se em cinema auxiliando o pai na realização de seus últimos filmes já de volta à França, Marcel iniciou sua carreira solo trabalhando para o rádio e a televisão na Alemanha do final dos anos 1950. Seu amor maior sempre foi pela ficção, comédias e musicais à frente. Debutou com o episódio alemão de “O Amor Aos Vinte Anos” (1962), ao lado de curtas dirigidos por François Truffaut e Andrzej Wajda, entre outros, tornando-se em seguida companheiro de viagem da “nouvelle vague” em seus dois primeiros longas-metragens, “Peau de Banane” (Casca de Banana, 1963) e “Feu À Volonté” (Fogo à Vontade, 1965).
Variações ambos de comédias de ação, o primeiro estrelado por Jeanne Moreau e Jean-Paul Belmondo, o segundo, por Eddie Constantine, foram insuficientes para a decolagem de uma carreira como cineasta de ficção. O encontro marcado de Ophuls era mesmo com o documentário. Já em 1967 realizava para a TV “Munique 1938 Ou A Paz Por Cem Anos”, sobre o acordo entre lideranças européias que atapetou o terreno para beligerância nazista.
Logo em seguida, focando a experiência da cidade industrial francesa de Clermont-Ferrand nos anos de ocupação nazista, com “A Tristeza e A Piedade” reacendia a chaga francesa quanto à dimensão do colaboracionismo -e encontrava seu próprio estilo. Marcel Ophuls se apresenta como uma espécie de Sherlock Holmes da História, entrevistador incansável, investigador do abismo entre memória e verdade. É nisso o pioneiro do modelo performático de documentário, de Michael Moore (Roger & Eu) a Avi Mograbi (Agosto).
“Meus filmes, compostos quase que exclusivamente de entrevistas filmadas e de documentos de arquivo, são bastante longos, complexos e inteiramente estruturados sobre as falas das inúmeras testemunhas. Creio que poderíamos chamá-los de ‘testemunhos múltiplos’”, apresentou-se Ophuls em sua “Carta ao Espectadores Brasileiros” publicada em 1997 na “Folha de S. Paulo” quando honrou com sua visita a segunda edição do É Tudo Verdade para a primeira retrospectiva brasileira de sua obra (O texto foi republicado pela Ilustríssima da mesma “Folha” em 1º de junho passado, por ocasião de sua morte).
O crítico francês François Niney foi ao ponto, num balanço já no início deste século: “Os filmes de Marcel Ophuls perturbam pois, para além do espetáculo e da opinião, desafiam nossa faculdade de julgar e nossa responsabilidade moral e política”. Tudo temperado por uma pitada de humor raríssima no cinema documental, irrefreável num diretor que tinha em seu Olimpo Ernst Lubitsch e Billy Wilder.
“Não amo particularmente o documentário”, provocou-me Marcel Ophuls com um sorriso em nosso primeiro encontro no Rio. O essencial era o tanto que o amava o documentário.