Por Amir Labaki
“O cinema é o
cinema, uma maneira específica de ver o mundo”. A certeira formulação de
Cacá Diegues (1940-2025) sintetiza o acerto essencial no foco do “Para
Vigo Me Voy”, o documentário de Lírio Ferreira e Karen Harley sobre um
dos diretores fundamentais do Cinema Novo lançado no ciclo Cannes
Classics do recém-encerrado 78º. Festival de Cannes. Finalizado apenas
três meses depois de sua despedida em fevereiro passado, ao mesmo tempo
aplaca um pouco o luto da partida e contribui para organizar as
reflexões sobre a importância de sua obra e de seu legado.
“Para
Vigo Me Voy” escapa da tradicional armadilha dos documentários
biográficos de comprimir uma trajetória de vida numa narrativa
cronológica do berço ao túmulo. Ferreira e Harley retratam Diegues por
meio de um ensaio sobre seus filmes, seus pensamentos e suas emoções por
eles expressos, seguindo a ordem de produção, mas libertos da camisa de
força da estrita ordem filmográfica.
A
estrutura analítica é arejada por registros inéditos e de arquivo que o
captam em gravações contemporâneas do cotidiano de seus últimos anos,
em casa ou durante as filmagens de sua última realização, o ainda
inédito “Deus Ainda É Brasileiro” (em finalização), em documentários
antigos de encontros festivos com companheiros de viagem do Cinema Novo e
em reportagens filmadas durante rodagens e lançamentos de várias de
suas principais obras.
A
arguta e ágil edição de cenas centrais de seus filmes mais marcantes e
de seu sempre cristalino discurso sobre as obras radiografa a curva de
seu processo criativo por mais de meio século no instável território
audiovisual brasileiro. Como alerta em meio de percurso, “o mais
importante é que o cinema brasileiro pare de viver de ciclos”
-Cataguases, chanchadas, Vera Cruz, Cinema Novo, Cinema Marginal,
Embrafilme, Retomada, Ancine é o que o, nos assombra.
Duas
belas falas iluminam sua relação com o movimento que ajudou a fundar e
desenvolver. A primeira é um tributo: “Se os filmes de Nelson (Pereira
dos Santos, 1928-2018) não tivessem existido antes do Cinema Novo, o
Cinema Novo não poderia ter existido”. Veja ou reveja, assim, “Rio, 40
Graus” (1955) e “Rio, Zona Norte” (1957).
É
programática a segunda, de inocência, arrojo e desmesura tocantes até
hoje e para sempre arraigados aos sonhos de outrora da juventude de um
país que ainda sonhava: “O projeto do Cinema Novo era muito simples:
mudar a história do cinema, mudar a história do Brasil e mudar a
história do planeta. Era só isso”.
A
navegação pelos trechos de seus filmes reafirma uma constante: a
sensibilidade para se aproximar da cultura popular, Carnaval à frente, e
samba, e artistas mambembes, e circo, e mesmo televisão. De saída,
lembre-se, há seu primeiro curta-metragem profissional, “Escola de
Samba, Alegria de Viver”, um dos episódios do pioneiro “Cinco Vezes
Favela” (1962).
Mas não só
tem em tema, mas em forma. “A estrutura do Carnaval é que está nos
filmes”, atenta ele, apontando três exemplos óbvios: “Quando o Carnaval
Chegar” (1972), “Xica da Silva” (1976), “Orfeu” (1994).
Uma
pontual revelação autobiográfica ancora uma vereda fundamental. “A
música na minha vida tem importância extraordinária, porque no fundo o
que eu queria era ser maestro. Eu estudei um pouquinho de violão, um
pouquinho de piano (...), mas não consegui tocar nenhum instrumento.
Acho que tenho uma certa frustração nisso”. Cacá vai além: “Passo o dia
ouvindo música. E se você for ver nos meus filmes, todos eles há uma
relação com a música muito direta. Ou direta mesmo, como em “Quando o
Carnaval Chegar”, ou uma interferência incidental da música de uma
maneira forte, como em “A Grande Cidade”, “Os Herdeiros” ou mesmo “Xica
da Silva”, ou então na própria estrutura do filme”.
Impossível
melhor título, pois, que “Para Vigo Me Voy”, título da rumba do cubano
Ernesto Lecuona imortalizada por Xavier Cugat, tornada mote do
inesquecível Lorde Cigano de José Wilker na Caravana Rolidei de “Bye Bye
Brasil” (1980). Na mosca, Cacá resume sua obra-prima: “É um filme sobre
as coisas que estão nascendo e que estão acabando no Brasil”. Dedicado a
nós, brasileiros, do século XXI. Aquela aquarela mudou.