Por Amir Labaki
Reafirmando a crescente ênfase no cinema de patrimônio, a 78a edição do Festival de Cannes mais uma vez apresentou em sua pré-abertura, na tarde da última terça-feira (13), um dos destaques de Cannes Classics: “Em Busca do Ouro” (1925), de Charles Chaplin, que ganha em seu centenário relançamento mundial, no mês que vem, numa versão restaurada em 4K pela distribuidora mk2. Complementando a celebração à cinematografia brasileira deste ano, na próxima segunda (19), a mesma mostra exibe em pré-estreia mundial “Para Vigo Me Voy!”, documentário biográfico de Cacá Diegues (1940-2025) dirigido por Lírio Ferreira e Karen Harley.
Num autêntico festival dentro do festival, nada menos que 31 títulos de quatro continentes foram selecionados neste 21o aniversário da seção dedicada por Cannes a clássicos restaurados e a documentários sobre cinema. Quase metade representam os EUA (8) e a França (7), mas a América Latina marca boa presença com quatro filmes: o documentário sobre Diegues, intitulado a partir do mote histriônico de Lorde Cigano (José Wilker) em “Bye Bye Brasil” (1979); o melodrama argentino “Além do Esquecimento” (1956), de Hugo del Carril; “La Paga” (1962), do colombiano Ciro Durán, uma co-produção entre Colômbia e Venezuela sobre lutas camponesas considerada perdida depois de banida das telas antes mesmo de seu lançamento; e “Amores Perros” (2000), o longa-metragem de estreia do mexicano Alejandro González Iñarruti.
A seleção americana tem o privilégio de abrir e de encerrar Cannes Classics 2025. Desenvolvido a partir da corrida pela fortuna no Alasca de fins do século 19, “Em Busca do Ouro” confirmou a carreira de Chaplin como diretor de longas-metragens cômicos na United Artists, com enorme sucesso de bilheteria. Uma das realizações prediletas do próprio cineasta, chegou a conquistar, ao lado de “Luzes da Cidade” (1931), o segundo posto entre os 10 maiores filmes da história no primeiro levantamento feito pela revista britânica Sight & Sound em 1952. O pedágio do tempo lhe foi injustamente cruel, não constando nem entre os 200 títulos mais votados da mais recente pesquisa, de 2022 (“Luzes da Cidade” ficou na 36a posição).
Classificado na 45o. posto na mesma pesquisa, “Barry Lyndon” (1975), a coprodução anglo-americana adaptada do romance de William M. Thackeray por Stanley Kubrick, encerra Cannes Classics a próxima sexta (23), penúltimo dia do festival. Em ritmo compassado, filmado totalmente com iluminação natural, a luta pela ascensão social de um jovem irlandês na Grã-Bretanha do início do século 19, interpretado por Ryan O’Neal, foi quando de seu lançamento o primeiro desapontamento de público e de crítica de Kubrick. Ao contrário de “Em Busca do Ouro”, conquistou com o passar dos anos o reconhecimento negado na estreia.
Foi também em busca de maior prestígio crítico que Quentin Tarantino veio a Cannes nesta semana apresentar dois faroestes dirigidos pelo prolífico George Sherman (1908-1991), “um profissional”, como o definia Rubens Ewald Filho: “Escrava do Ódio” (1949) e “Terra Selvagem” (1950). Mantendo a tradição de lançar biografias de estrelas produzidas pela HBO, como as de Elizabeth Taylor e Faye Dunaway no ano passado, o ciclo apresenta “My Mom Jayne”, retrato da sex-symbol de vida breve Jayne Mansfield (1933-1967) dirigido pela própria filha, Mariska Hargitay.
Também a representação cinefílica francesa se divide entre a celebração de seu star-system e a homenagem a autores clássicos. A consagrada Diane Kurys recorda em “Moi Que T’Aime” (Eu Que Te Amo) um dos casais mais marcantes do cinema francês do pós-guerra, Simone Signoret e Yves Montand. Os 130 anos de nascimento do dramaturgo e cineasta Marcel Pagnol (1895-1973) são lembrados em Cannes Classics pela nova cópia de “Merlusse”, inspiração para o recente “Os Rejeitados” (2023) de Alexander Payne, assim como pela animação “Marcel et Monsieur Pagnol”, de Sylvain Chomet (As Bicicletas de Belleville, 2003), apresentado neste sábado (17) em Sessão Especial.
Entre os seis clássicos do cinema asiático, puxam a fila os filmes de estreia de pioneiras respectivamente de Hong Kong, Tang She Suen com “O Arco” (1968), de T’ang Shushuen, e, do Sri Lanka, Sumitra Peries com “Genehu Lamai” (As Garotas, 1978). Uma cópia restaurada de “Nuvens Flutuantes” (1955) homenageia os 120 anos de nascimento do japonês Mikio Naruse (1905-1969), celebrados atualmente também em Nova York por uma retrospectiva na Japan Society. Já da seleção africana, nada se compara em impacto a “Crônica dos Anos De Fogo” (1975), do argelino Mohammed Lakhdar-Hamina, hoje com 91 anos e primeiro e único cineasta do continente a conquistar a Palma de Ouro.
Não é tudo, mas já é o bastante. Neste ano em que o Brasil é o País de Honra do Mercado de Filmes, tomara se escute o retumbante chamado em favor do cinema de patrimônio de Cannes Classics.