Por Amir Labaki
Batizado em homenagem ao filme inacabado rodado parcialmente no Brasil por Orson Welles (1915-1985) em 1942, era incontornável que o É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários retornasse em sua 30ª edição a um dos projetos mais fascinantes da história do cinema. Nada melhor do que fazê-lo ouvindo a maior especialista em “It’s All True”, Catherine L. Benamou, no marco do lançamento oficial no país de seu fascinante estudo, “It’s All True – A Odisséia Pan-Americana de Orson Welles” (Editora Unesp, 504 págs, tradução de Fernando Santos).
Na segunda mesa da 22ª Conferência Internacional do Documentário, realizada em parceria entre o festival e a Cinemateca Brasileira, Benamou conversou, em participação via internet, com o ensaísta e gestor cultural Carlos Augusto Calil sobre a história do filme, o foco de sua crucial pesquisa de doutorado e o estado atual do que se preservou do material filmado por Welles. O que ouvimos a um só tempo reafirmou a admiração pela extraordinária dedicação com que Benamou há três décadas ilumina um dos episódios centrais da trajetória artística do diretor de “Cidadão Kane” (1941) e frisou o quanto ainda há a fazer para plenamente compreendê-lo.
Um breve resumo se impõe, como convite para você mergulhar num volume essencial para qualquer biblioteca sobre cinema. Com o engajamento dos EUA na Segunda Guerra, Orson Welles foi mobilizado no esforço de propaganda, dentro da Política de Boa Vizinhança com os países da América Latina, para rodar um filme de episódios. “It’s All True” seria composto por quatro episódios: um mexicano, “My Friend Bonito”; dois brasileiros, “Carnaval”, sobre a festa popular no Rio, e “Jangadeiros”, sobre uma viagem de protesto de pescadores de Fortaleza à então capital federal; e um norte-americano, “A História do Jazz”, inspirado na vida de Louis Armstrong.
Apenas os três primeiros episódios foram filmados. Sob orientação de Welles, Norman Foster filmou no México, em fins de 1941. Entre fevereiro e julho de 1942, Welles rodou no Brasil, enfrentando crescentes resistências de toda ordem, minado pela oposição ferrenha da nova direção da RKO, o estúdio hollywoodiano ao qual era vinculado e coordenava a produção. “Jazz” nunca saiu do papel.
Orson Welles morreu em 1985 sem nunca conseguir acesso ao material filmado para editar “It’s All True”. A partir dos esforços de um de seus assistentes no Brasil, Richard Wilson (1915-1991), um documentário com uma reconstituição parcial veio à luz em 1993, “É Tudo Verdade – Baseado num Filme Inacabado de Orson Welles”, assinada por Wilson, Myron Meisel e Bill Krohn, para a qual foi decisiva a participação de Benamou como pesquisadora e produtora.
A preservação das extensas filmagens brasileiras de Welles passou ao largo do Brasil. Os negativos em nitrato de “It’s All True” foram assumidos pela Desilu Productions em 1957 quando esta adquiriu a RKO. Uma década mais tarde, em nova sucessão empresarial, chegaram à Paramount Pictures, atual detentora dos direitos. Nos anos 1980, o material filmado foi doado ao American Film Institute, que confiou sua preservação ao Arquivo de Cinema e Televisão da UCLA.
Depois de um longo hiato, em 2023 a Paramount iniciou o processo de digitalização em 4K do material, felizmente sob consultoria de Benamou. “Neste momento, me dedico a ver como os materiais em nitrato de ‘It’s All True’ podem ser preservados e aproveitados de forma conscienciosa e educativa”, contou a pesquisadora na Conferência. Cenas inéditas rodadas por Welles em Ouro Preto serão utilizadas, já revela, “em um novo documentário, “Welles na Terra do Silêncio”, a ser dirigido por Laura Godoy e produzido por Marcella Jacques, em Minas Gerais”.
Celebre-se a digitalização, mas é essencial atentar para o alerta soado por Catherine L. Benamou e Carlos Augusto Calil. Do ponto de vista de técnica de preservação cinematográfica, uma etapa essencial não está sendo cumprida: o da copiagem dos rolos de nitratos em um filme de segurança.
“Segundo a UCLA, essa cópia de segurança é necessária, mas depende-se da Paramount para financiar essa preservação”, detalhou Benamou. “A Paramount optou por uma transferência direta para 4K” -isto é, apenas uma cópia em digital, e não em filme de segurança. O envolvimento de nosso Ministério da Cultura neste financiamento seria uma bela e justa retribuição ao tesouro cinematográfico legado ao país por Orson Welles.