Por Amir Labaki
A retrospectiva internacional da 30ª edição do É Tudo Verdade, que acontece entre os dias 3 e 13 do próximo mês, simultaneamente em São Paulo e no Rio de Janeiro, destaca um dos maiores documentaristas da história, o britânico Humphrey Jennings (1907-1950). Reafirma-se assim o compromisso destas três décadas de concentrar as atenções num dos pioneiros da afirmação da autonomia estética do documentário mundial, como anteriormente apresentaram-se as contribuições únicas e essenciais de mestres como Dziga Viértov, Frederick Wiseman, Jean Rouch, Johan van der Keuken, Joris Ivens, Kristof Kieslowski, Marina Goldovskaya, Robert Drew e Santiago Alvarez, para citar apenas alguns exemplos.
Como o cineasta brasileiro celebrado também nesta edição, Vladimir Carvalho (1935-2024), Jennings desenvolveu uma filmografia exclusivamente de filmes não-ficcionais. Num ensaio pioneiro (1954) que se tornou clássico, o crítico e então jovem documentarista Lindsay Anderson (1923-1994), que logo se afirmaria como um dos líderes do “New British Cinema” dos anos 1960, cravou Humphrey Jennings como “o único poeta real do cinema britânico” até aquela data.
“Seus temas eram, ao menos na superfície, os mais comuns; mas sua forma de expressão foi sempre individual, e afirmou-se mais e mais assim”, sustentou Anderson. “Era um estilo que mantinha a relação mais próxima possível com o tema — com aquele aspecto de seus assuntos que sua visão particular o fazia enfatizar consistentemente. Era, isso quer dizer, um estilo poético”.
“Esse jovem que escrevia poesia descritiva e pintava quadros surrealistas procurava em cinema audaciosas conciliações”, explicou pioneiramente por aqui (1959) Paulo Emílio Salles Gomes. “O melhor da obra de Jennings consiste na coadunação do seu gosto por certo hermetismo com a função da comunicabilidade do documentário”.
“A razão pela qual Jennings ainda não obteve fora de seu país o renome que merece”, arriscava Paulo Emílio, “reside, talvez, na profundidade de seu britanicismo, (...) Suas melhores fitas (Family Portrait, A Diary for Timothy, Listen to Britain) são um caleidoscópio de alusões íntimas aos costumes, à cultura e às manias da Inglaterra”.
Pintor primeiro e sempre, Jennings abraçou o documentário como uma forma mais estável de ganhar a vida, trabalhando toda sua carreira como diretor de filmes de produção oficial. Seu engajamento inicial em 1934 foi no GPO Film Unit, o braço cinematográfico dos correios britânicos, grupo liderado por ninguém menos que John Grierson, um dos pioneiros na realização e definição do cinema não-ficcional. Em 1940, o GPO reformulou-se como Crown Film Unit, sob controle do Ministério de Informação, e tornou-se, já sem Grierson na batuta, responsável pelos filmes de propaganda dentro do esforço de guerra.
Seu convívio com Grierson foi para lá de problemático. Enquanto o coordenador defendia um documentarismo mais cru e didático, Jennings desde seus inícios apostou em filmes de extraordinário lirismo e marcante erudição literária e musical. Felizmente não estava sozinho na defesa de maior experimentação formal, trabalhando ao lado do cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti (1897-1952) e do animador neozelandês Len Lye (1901-1980). Vale lembrar, ainda, que um de seus parceiros regulares (Spare Time; Listen to Britain; The Silent Village) foi o diretor de fotografia Henry Edward “Chick” Fowle (1915-1985), trazido em 1950 por Cavalcanti para o Brasil para robustecer a equipe técnica da então nascente Vera Cruz, aqui para sempre radicando-se e colaborando em clássicos como “Caiçara” (1950), “O Cangaceiro” (1953) e “O Pagador de Promessas” (1962).
A mostra de oito de seus principais títulos inclui o essencial de sua produção no período entre 1939 e 1945, destilando “algo da alma da nação britânica em guerra”, no reconhecimento recente do crítico Jeffrey Richards, e duas obras que confirmam a originalidade de seu estilo em realizações anteriores (Spare Time, 1939) e posteriores (Family Portrait, 1950) ao conflito cujo encerramento completa agora oitenta anos. O pedágio do tempo não se faz sentir.
Kevin Macdonald e Mark Cousins bem explicaram as razões: “Os filmes de Jennings foram todos bem roteirizados e misturam filmagens documentais com ‘reconstrução’, muitas vezes embaralhando a linha entre documentário e ficção”. Confira em “Fires Were Started” (1943), retratando a ação de bombeiros em Londres durante o auge dos ataques incendiários dos nazistas, e “The Silent Village”, do mesmo ano, em que uma vila galesa dramatiza o massacre nazi na cidade de Lídice, na Tchecoslováquia.
O futuro do cinema já ali respira: o neorrealismo italiano e a escola iraniana de Kiarostami e Makhmalbaf; o “New British Cinema” de Anderson, Richardson e Reisz e os mestres ingleses contemporâneos como Derek Jarman, Ken Loach e Mike Leigh. O imenso cinema de Humphrey Jennings é uma chama que nunca se apagou.