Por Amir Labaki
A extraordinária conquista do primeiro Oscar do cinema brasileiro, com a premiação como melhor filme internacional de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, tem por maior precedente a consagração com a Palma de Ouro de 1962 de “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte. São ambos triunfos históricos e raros para produções de qualquer cinematografia nacional distante de Hollywood e do cinema europeu de autor e como tal devem ser celebrados. Ocorreram, contudo, em circunstâncias marcadamente diversas.
O Festival de Cannes debutou em 1946 visando estabelecer-se como o grande evento internacional do cinema de arte do pós-guerra, em oposição à Mostra Internacional da Arte Cinematográfica de Veneza fundada em 1932 sob a batuta fascista. A vitória surpreendente de “O Pagador de Promessas” foi apenas o terceiro triunfo no festival francês de uma produção externa ao cinema dos EUA e da então chamada Europa Ocidental, sucedendo a do japonês “O Portão do Inferno”, de Teinosuke Kinugasa, em 1954, e a do soviético “Quando Voam As Cegonhas”, de Mikhail Kalatozov, em 1958.
Não se pode incluir no mesmo grupo o ganhador da Palma de Ouro de 1959 (e também do Oscar de filme estrangeiro do ano seguinte), “Orfeu Negro”, dirigido pelo francês Marcel Camus, ainda que rodado no Brasil e falado em português, a partir do musical teatral de Vinícius de Moraes e Tom Jobim. “Orfeu Negro” mistura duas fórmulas populares da época: a estrutura clássica do melodrama e o apelo exótico dos trópicos. Camus se distanciou da peça original adaptando-a para um Rio de Janeiro cheio de clichês: cenas de cartão-postal, com as praias e o Corcovado; romantização das favelas, pobres, mas coloridas e sensuais; o Carnaval como vislumbre de uma pretensa integração social; os rituais afro-brasileiros como uma espécie de "vodu carioca”.
Três anos mais tarde, “O Pagador de Promessas” saiu-se vencedor como uma produção inteiramente brasileira, dirigida por uma das grandes estrelas do cinema nacional, Anselmo Duarte. Adaptado da peça homônima de Dias Gomes, apresentava um intenso drama social sobre a intransigência de uma autoridade religiosa de uma igreja de Salvador na Bahia. Clássico em sua fatura, teria sido escolhido pelos “mistérios do compromisso” do júri, segundo uma análise muito posterior (2018) de Gilles Jacob, à época da premiação crítico de cinema e futuro diretor artístico do festival.
Recém-chegado de uma visita ao Rio, na qual testemunhara a efervescência da aurora do Cinema Novo, François Truffaut teria sido um dos jurados decisivos para a escolha de “O Pagador de Promessas” como solução para um impasse. Embora formalmente mais próximo do classicismo da produção da Vera Cruz do que da renovação formal cinemanovista ainda em gestação, o filme de Anselmo Duarte despertou com o prêmio uma atenção internacional para a produção cinematográfica brasileira em patamares inéditos desde “O Cangaceiro” (1953), de Lima Barreto. Dois anos após a primeira e única Palma de Ouro latino-americana, em plena instauração da ditadura militar, o Cinema Novo eclodia em Cannes com nada menos que “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, e na Semana da Crítica, “Ganga Zumba”, de Cacá Diegues.
“Ainda Estou Aqui” conquistou finalmente um Oscar inédito para o país, assim como uma inédita indicação a melhor filme para uma produção falada em português e a consagração como estrela internacional de Fernanda Torres para além da disputa do prêmio de melhor atriz, numa convergência de processos. Por um lado, a a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood vive uma salutar renovação na última década, rumo à maior diversidade e internacionalização.
Não à toa, desde 2018, com uma única exceção (2019), produções não americanas têm conquistado indicações a melhor filme e, em 2020, o sul-coreano “Parasita”, de Bong Joon-ho, fez história ao vencer a categoria principal. Outro símbolo deste maior cosmopolitismo foi a renomeação da antiga categoria de “melhor filme de língua estrangeira” como “melhor filme internacional”.
Por sua vez, o tom sóbrio e contido imprimido por Walter Salles ao drama familiar catalisado pela truculência política da ditadura militar brasileira alcançou um registro de rara identificação para um filme brasileiro pelo público internacional (assim como nacional, como comprova a marca de 5 milhões de espectadores). Combinou-se a isso uma arguta estratégica de lançamento mundo afora, baseada em extensa presença em festivais internacionais e sólidas estreias no mercado americano e europeu, para a qual foi essencial a experiência da parceria anterior, em “Central do Brasil” (1998), entre Walter Salles e a distribuidora Sony Classics. Excelência cinematográfica e uma campanha competente não garantem prêmios, quanto mais um Oscar, mas sem isso impera a invisibilidade.
“A vitória de ‘O Pagador de Promessas’ no Festival de Cannes de 1962 teve efeitos estimulantes não só para as pessoas já empenhadas na atividade cinematográfica”, comentou um ano depois nosso principal crítico, Paulo Emílio Sales Gomes. “Homens públicos e de negócios voltam suas vistas para o cinema brasileiro, considerando-o como algo possivelmente remunerador e que de qualquer forma corresponde certamente a uma necessidade e interesses nacionais”. É possível projetar o mesmo, sessenta anos passados, para o triunfo agora de “Ainda Estou Aqui”. Tomara as consequências sejam mais profundas e as fragilidades estruturais, mais frontalmente enfrentadas -a começar da regulação efetiva e soberana do streaming no país. A hora é já.