Por Amir Labaki
Com uma série de pré-estreias e debates, Silvio Tendler prepara o lançamento em salas de “Brizola, Anotações Para Uma História”, sobre o líder trabalhista que foi governador do RS (1959-1963) e do Rio de Janeiro (1983-87 e 1991-1994), deputado federal cassado e exilado em 1964, e candidato à Presidência por duas vezes (1989 e 1994) depois da redemocratização de 1985. Em sua vasta filmografia documental de mais de meio século, “Brizola” forma uma tetralogia de retratos políticos de herdeiros de Getúlio Vargas (1882-1954) essenciais à história da democracia brasileira na segunda metade do século 20.
O primeiro foi Juscelino Kubitschek (1902-1976) em “Os Anos JK” (1980), realizado ainda em plena aurora do processo de abertura do regime militar (1964-1985). Seguiu-se um dos principais filmes do ocaso da ditadura, “Jango -Como, Quando e Por Que Se Depõe Um Presidente” (1984), um dos documentários de maior sucesso de bilheteria no país.
Quase três décadas se passaram até o terceiro título, “Tancredo, A Travessia” (2011), lançado na mostra competitiva do É Tudo Verdade 2010. Segundo Tendler, boa parte da pesquisa para o novo filme se desenvolveu durante essa produção anterior. O aumento no custo dos arquivos o levou a recorrer de forma inédita a ilustrações de pegada cartunesca. Os três primeiros filmes podem generosamente ser assistidos de graça on-line no site da produtora do cineasta, a Caliban.
Tendler não se furta de tratar nos quatro filmes, ainda que maneira concisa, do complexo protagonismo de Getúlio na política brasileira -presidente à frente da Revolução de 1930, ditador no Estado Novo de 1937 a 1945, presidente eleito em 1950 que, com seu suicídio em 1954, atrasou por uma década novo surto autoritário. O foco do quarteto é a projeção política dos quatro principais legatários de Vargas durante o período democrático de 1945 a 1964 e o brutal impacto sobre suas vidas e carreiras do golpe de 1964 e do longo regime autoritário.
As trajetórias de JK e Jango foram cruelmente encurtadas. Tancredo e Brizola, nas circunstâncias possíveis e com estilos distintos, combateram a ditadura militar até sua derrocada.
As relações deles com Getúlio foram distintas, mostra Tendler, e todas vinculadas aos dois partidos, PSD e PTB, criados por Vargas para o pós-Estado Novo. Pessedistas, JK, no governo de MG (1951-55), se solidarizou com Getúlio até os últimos dias do “mar de lama” de 1954, enquanto Tancredo, Ministro da Justiça, foi das raras vozes a defender que Getúlio resiste à frente do Executivo até o fim.
Gaúchos do interior como Vargas, Jango e Brizola afloram politicamente dessas raízes profundas do trabalhismo. Presidente do PTB, Jango foi Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio do governo democrático de Getúlio por breves oito meses, caindo após defender uma recuperação histórica do valor do salário mínimo. Já Brizola, sob impulso de Vargas, fez a partir de 1947 carreira meteórica, inicialmente no legislativo, depois na prefeitura de Porto Alegre e no governo do RS, tendo sempre a educação como prioridade.
Escorados no mesmo tripé (narração, arquivos e novas entrevistas), os quatro filmes diferenciam-se em tom e estilo. “JK” é mais analítico, “Jango”, mais emocional. “Tancredo”, mais didático. “Brizola”, mais indignado. Na diversidade das sequências iniciais, Tendler adianta as variações.
Em plena ditadura, “Os Anos JK” abre com discursos de lideranças parlamentares tão polares como Juracy Magalhães (UDN) e Luiz Carlos Prestes (PCB) na promulgação da nova Constituição democrática de 1946, aquela mesma rasgada pelo golpe militar ainda vigente. “Jango” se inicia com o até então aqui desconhecido cinejornal chinês sobre a pioneira viagem, do então Vice-Presidente à China comunista de Mao, em agosto de 1961, na sequência da qual, com a renúncia de Jânio Quadros e o veto dos ministros militares à posse constitucional de Goulart, uma extensa viagem de volta deu tempo para a consolidação da campanha da Legalidade, liderada por Brizola desde o RS, e a solução de compromisso com a posse sob um novo regime parlamentarista.
Por sua vez, “Tancredo” começa pelo dramático fim: registros da vigília popular nas ruas paulistanas ao lado do Instituto do Coração em que agonizava o presidente (indiretamente) eleito, mas não empossado. Após a cerimônia do adeus, ao som do Hino Nacional entoado à capela por Fafá de Belém, o já então ex-presidente Fernando Henrique Cardoso estabelece de pronto: “Tancredo tinha visão de estadista”.
Um close de Brizola preparando-se para um depoimento dá a partida ao novo documentário. Durante quase seis minutos, Tendler destaca-lhe falas em situações distintas.
Eis o grande comunicador – “Podemos falar sobre a época. Me fala o tempo”. A constante preocupação social: “Democratizar a propriedade -por que não”? E, respondendo à cutucada de FHC sobre o preço dos CIEPS no debate da campanha presidencial de 1994, a obsessão de toda uma vida: “Cara mesmo é a ignorância”. É Silvio Tendler, no tom de cada um de seus filmes, respondendo aos chamados da hora.