Por Amir Labaki
O cinema glorificou a atriz e documentarista alemã Leni Riefenstahl (1902-2003), o cinema agora cuida de concluir sua definitiva desmistificação. Lançado na recente 81ª Mostra Internacional da Arte Cinematográfica de Veneza, desembarca neste final de semana no Festival do Rio o documentário “Riefenstahl: Cinema e Poder”, do alemão Andres Veiel.
A fama de Riefenstahl foi iniciada ao estrelar, ainda no ocaso do cinema mudo, uma série popular de melodramas montanhosos de Arnold Fanck (O Inferno Branco do Piz Palü, 1929, Tempestade no Monte Branco, 1930), consolidando-se ao assumir ela mesma também a direção (ao lado de Béla Balász) de “A Luz Azul” (1932). Em fevereiro do mesmo ano, ela se uniu a 25 mil berlinenses num comício no Palácio dos Esportes do líder nazista Adolf Hitler. “Foi como se tivesse sido iluminada por um relâmpago”, reconheceria mais tarde.
Menos de um ano depois, tragédia anunciada, Hitler alcançava o poder. Para filmar o congresso partidário comemorativo de sua ascensão, em Nuremberg, ele pessoalmente escolheu a diretora de “A Luz Azul”, em circunstâncias ainda obscuras. “A Vitória da Fé” (1933) seria o primeiro dos nove filmes publicitários realizados por ela para o regime nazista.
Dois se tornaram célebres: “O Triunfo da Vontade” (1934), sobre o sexto congresso do partido nazista, e “Olympia” (Olimpíadas -Festa da Beleza, Festa dos Povos, 1938), sobre os Jogos Olímpicos de Berlim. O primeiro coreografava a marcialidade do III Reich, endeusando seu “Führer”. O segundo inovava em angulações e dinamismo das câmeras o registro das disputas esportivas, a partir de uma tropa de 30 cinegrafistas.
Com a invasão alemã da Polônia em setembro de 1939, Riefenstahl se engajou de saída como correspondente cinematográfica da guerra. O trauma de uma única ida ao front, durante o massacre de judeus da pequena cidade polonesa de Konskie, encerrou a experiência. Durante o conflito, ela filmaria apenas uma adaptação de uma ópera cara a Hitler, “Tiefland” (Terra Baixa), que apenas em 1954 conseguiria lançar nas telas.
Com a derrota alemã, Leni foi presa por quatro anos num campo francês. Iniciava sua batalha até a morte para negar qualquer simpatia política pelo regime nazista e qualquer conhecimento do Holocausto. Em 1949 o tribunal militar gaulês a considerou “livre de incriminação política”. Nenhuma sentença a libertaria, contudo, de mais de meio século de vida como pária.
Nas décadas seguintes, Riefenstahl buscou reinventar-se como fotógrafa, em livros sobre a tribo nuba no Sudão. Em 1987, registrou sua versão negacionista num alentado livro de memórias. Colecionou ainda, por três décadas, filmagens subaquáticas para lançar no ano de seu centenário, “Impressões Submarinas” (2002). E, aos 101 anos, morreu dormindo em sua casa retirada, no interior da Baviera.
Em “Riefenstahl: Cinema e Poder”, Andres Veiel aprofunda e atualiza a pesquisa sobre ela de “Leni Riefenstahl – A Deusa Imperfeita” (The Wonderful, Horrible Life of Leni Riefenstahl, 1993), dirigido por Ray Müller. Apesar de catalisado pela vontade da própria cineasta, o documentário de Müller já problematizava a narrativa autovitimizante sustentada em longas entrevistas exclusivas de Riefenstahl.
Veiel conta com alicerces documentais vigorosos para seu processo fílmico de Leni Riefenstahl. Teve acesso inédito a mais de 700 caixas do arquivo da cineasta, incluindo diários, fotografias e gravações em cassete de encontros e telefonemas. Pode utilizar filmagens não editadas por Müller, como a íntegra de uma explosiva altercação com Leni ao ser indagada sobre seu convívio próximo com Joseph Goebbels, o ministro de Propaganda de Hitler. Reuniu inúmeras entrevistas, sonoras e audiovisuais, na Europa e nos EUA.
Não se subestimem dois outros fatores. Primeiro: Veiel teve a guiá-lo a soberba biografia (ainda sem edição no Brasil) lançada em 2007 por Steven Bach (1938-2009), devidamente reconhecido nos agradecimentos.
Segundo: o novo filme tem por produtora Sandra Maischberger, que como jornalista pessoalmente ouviu e não engoliu a cantilena de Riefenstahl pouco antes de sua morte. “Saí da sua casa na Baviera e pensei claramente: ela mentiu. E mentiu não apenas a mim, mas a ela própria durante décadas”, testemunhou Maischberger na coletiva de Veneza.
Leni nega o convívio social com a liderança nazista? Eis fotos dela com Hitler, olhos nos olhos, mãos nas mãos, e com Goebbels, sorridentes numa mesa primaveril, ou a extensa documentação de sua amizade estreita com o arquiteto do III Reich, Albert Speer, mesmo depois deste cumprir duas décadas de prisão.
“Eu nunca vi nenhuma atrocidade”? Eis o close aterrorizado dela mesma, em Konskie, com ao menos uma carta indagando se não teria sido ela mais que testemunha da matança. “A paz” era a mensagem de “O Triunfo da Vontade”? Um par de clipes basta para ridicularizá-la. E há mais, muito mais.
“Aos poucos e descobrindo material fomos desmantelando as suas mentiras”, contou Veiel em Veneza. Escritos de Siegfried Kracauer, Lotte Eisner e Susan Sontag pioneiramente alertaram há tempos sobre o caráter autoritário e anti-humanista inerente à sua obra. Nada mais adequado que a desconstrução das lendas de sua vida aconteça agora em filme.