Por Amir Labaki
Se 1982 foi um ano marcante para a refundação em novas bases do cinema de Hollywood, como argumenta Chris Nashawaty no best-seller ensaístico “The Future Was Now” (Flatiron Books) comentado aqui há duas semanas, talvez ainda mais simbólico tenha sido para a redefinição da atividade cinematográfica no Brasil. Não que seja possível apontar similar impacto de um grupo específico de produções, como teriam tido as ficções científicas dos EUA daquele ano, mas por um par de eventos e filmes que, vistos em conjunto mais de 40 anos passados, claramente apontava para mudanças de rumo radicais no cinema brasileiro durante a seguinte década.
Os dois pés fundamentais de nossa indústria fílmica daquele começo dos anos 80 eram formados pela Embrafilme, a empresa estatal de economia mista com reconhecido sucesso na ampliação do mercado para os filmes nacionais, e pelo popular polo de produção na Boca do Lixo paulistana de comédias eróticas, apelidadas imprecisamente como “pornochanchadas”. 1982 detonaria crises que se tornariam fatais para ambos.
O ano seria aberto pela maior crise política da história da Embrafilme. O catalisador foi “Pra Frente, Brasil”, de Roberto Farias (1932-2018), ex-diretor-geral da empresa em sua fase áurea (1974-1979). Pouco depois de vencer o Festival de Gramado, então realizado em março, o filme foi censurado sob a justificativa oficial de ser “obra capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades e seus agentes” -isto é, a ditadura militar ainda em vigor e então encabeçada por seu último general-presidente (1979-1985), João Batista Figueiredo.
Roteirizado pelo próprio Farias a partir de um argumento do ator e cineasta Reginaldo Faria, seu irmão, e de Paulo Mendonça, “Pra Frente, Brasil” era um thriller político que denunciava a tortura contra opositores do regime no auge da repressão, em 1970, pela dramatização do sequestro e das sevícias de um nada militante pai de família (Faria). Tateando as águas, no filme o aparelho repressor era apresentado como pilotado por um grupo paramilitar de extrema direita, e não pela máquina oficial da ditadura, enquanto a maior seleção brasileira de futebol de todos os tempos disputava e conquistava o tricampeonato na Copa do Mundo do México
“Pra Frente, Brasil” custou o cargo ao então diretor-geral da Embrafilme, o futuro chanceler Celso Amorim, e amargou quase um ano de proibição, estreando apenas em fevereiro de 1983. Apesar da firme condução sob a direção de Carlos Augusto Calil (1982-1986), a empresa ingressou num período de águas turbulentas marcado pela grave crise econômica no país e por uma série de denúncias midiáticas. O desvario anticultural do governo Collor decretou em 1990 o fechamento da Embrafilme (e do Concine, orgão gestor da atividade), atirando o cinema brasileiro em um vácuo produtivo e mercadológico do qual começaria a recuperar-se apenas pela fundação da Ancine em 2001.
Por sua vez, a indústria de cinema popular baseada na Boca do Lixo no centro de São Paulo começou a rapidamente ruir com a estreia, em 7 de julho de 1982, do primeiro filme brasileiro de sexo explícito, “Coisas Eróticas”, de Rafaelle Rossi. Liquidava-se a fórmula algo ingênua de tramas quase sempre cômicas permeadas por cenas de nu parcial e sexo simulado, escorada por um “star system” todo próprio e cineastas experimentados, quando não cinéfilos. A recusa generalizada das principais atrações à conversão ao “hardcore”, avassalador com o público alcançado de quase 4,8 milhões de espectadores, implodiu o grupo. Era o fim de um dos pilares de um dos poucos ciclos de produção cinematográfica de sucesso no país.
Naquele ano, “Coisas Eróticas” foi superado em ingressos vendidos apenas pelo representante da mais longeva filmografia a encher regularmente as salas nacionais, “Os Trapalhões na Serra Pelada”, dirigido pelo veterano J. B. Tanko. No ano seguinte, vale lembrar, “Pra Frente, Brasil” não decepcionaria nas bilheterias, com quase 1,3 milhões de espectadores.
O thriller de Roberto Farias combinou sucesso de bilheteria com reconhecimento crítico. Mesmo lançado apenas no começo de 1983, “Pra Frente, Brasil” foi incluído entre as produções brasileiras passíveis de voto, por jornalistas e críticos (sim, um vergonhoso clube do Bolinha), na escolha dos melhores filmes de 1982 pela revista especializada Filme Cultura (41/42, editada pela Embrafilme). Ficou em quinto lugar.
O topo do ranking comprova quão vigorosa fora aquela safra brasileira de 1982. A lista dos dez preferidos era encabeçada por “O Segredo da Múmia”, de Ivan Cardoso, seguindo-se “Das Tripas Coração”, Ana Carolina; “Asa Branca, Um Sonho Brasileiro”, Djalma Limongi Batista; “O Olho Mágico do Amor”, Ícaro Martins e José Antônio Garcia; “Pra Frente, Brasil”; “O Homem do Pau-Brasil”, de Joaquim Pedro de Andrade; “Amor, Palavra Prostituta”, Carlos Reichenbach; o documentário “O Homem de Areia”, sobre José Américo de Almeida, de Vladimir Carvalho; empatados no nono lugar “Tabu”, de Júlio Bressane, e “Joana Angélica”, de Walter Lima Jr; e dividindo o décimo posto “Aopção (ou As Rosas da Estrada)”, de Ozualdo Candeias, e “O Sonho Não Acabou”, de Sérgio Rezende.
Combinando ao menos três gerações de cineastas, um terço dos quais assim destacados já na estreia, a relação prometia bons tempos à frente. O otimismo duraria pouco. Enquanto 1982 representou para Hollywood uma nova primavera, para o cinema brasileiro um longo e rigoroso inverno não demoraria a se instalar.