Por Amir Labaki
Ninguém tem feito mais e melhor do que Catherine L. Benamou para preservar e explicar “It’s All True”, o projeto cinematográfico rodado majoritariamente no Brasil em 1942 por Orson Welles, dentro da Política de Boa Vizinhança dos EUA para a América Latina durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e que nunca pôde ser por ele concluído. Depois de mais de uma década e meia de espera, finalmente chega às livrarias brasileiras o fundamental volume de Benamou editado a partir de sua tese de doutorado, “It’s All True – A Odisséia Pan-Americana de Orson Welles” (Editora Unesp, 504 págs, R$ 98,00, tradução de Fernando Santos).
“Este livro nasceu de uma curiosidade aguçada pela conjugação da criatividade de um cineasta como Orson Welles com a performance de Grande Otelo durante o Carnaval e a cultura dos jangadeiros de Fortaleza, comentada brevemente por Ronald Gottesman num livro sobre Welles”, recorda Benamou em sua apresentação à edição brasileira. Ela prossegue detalhando como seu engajamento se aprofundou com dois encontros fundamentais, no final dos anos 1980. O primeiro, intermediado em Nova York por Heloisa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda), com o fotógrafo húngaro George Fanto (1911-2000), responsável pelas imagens do episódio “Jangadeiros”; o segundo, com um dos assistentes de Welles e produtores das filmagens, Richard Wilson (1915-1991), que ainda tentava “realizar uma versão do projeto filmado cinquenta anos antes”.
Orson Welles havia falecido em 1985 sem nunca ter podido recuperar acesso ao extenso material filmado, entre fevereiro e julho de 1942, desde a interrupção da produção pelos estúdios RKO. Quando Benamou iniciou sua pioneira pesquisa, era quase tudo mato tanto nos estudos referentes a “It’s All True” quanto na luta pela preservação de seu material bruto.
Apenas Wilson iniciara esforços quixotescos para salvar os negativos em nitrato (mais de 200 latas, cerca de 70 mil metros de filme). Eram escassas as referências escritas específicas e ponderadas posteriores às filmagens, incluindo uma das colunas cinematográficas de Paulo Emílio Sales Gomes, dos idos de 1958. As monografias e biografias já abundantes sobre o diretor de “Cidadão Kane” (1941) eram, na melhor das hipóteses, telegráficas sobre “It’s All True”, em sua maioria estigmatizando a produção interrompida como um episódio maldito e redefinidor para a carreira do cineasta, alimentando a “lenda de ‘auteur terrible’”, diretor incontrolável de obras inacabadas. Louve-se, no Brasil, Rogério Sganzerla (1946-2004), um solitário cavaleiro pela valorização da jornada brasileira de Welles, havendo dedicado a ela, ainda em 1986, seu longa-metragem “Nem Tudo É Verdade”, o primeiro título do que seria sua trilogia wellesiana.
A partir de 1989, Catherine Benamou realizou duas viagens fundamentais de pesquisa ao Brasil para reunir documentação e entrevistar testemunhas da passagem pelo país de Welles enquanto realizava os episódios “Carnaval” (Rio de Janeiro) e “Jangadeiros” (Fortaleza). No livro, ela detalha as diversas etapas do filme pan-americano em dinâmica mutação, que amalgamaria documentário e ficção e teria ainda um episódio mexicano, “My Friend Bonito” (rodado sob orientação de Welles por Norman Foster) e outro americano, em torno de Louis Armstrong e a história do jazz (jamais iniciado).
Benamou se engajou também como pesquisadora e produtora na até hoje mais importante reconstituição parcial do filme, o documentário “É Tudo Verdade – Baseado num Filme Inacabado de Orson Welles” (1993), dirigido por Richard Wilson, Myron Meisel e Bill Krohn (lançado num DVD do cineasta pela Versátil, hoje esgotado). Ao lado de entrevistas com participantes e testemunhas das filmagens, como Grande Otelo, Peri Ribeiro e familiares dos quatro jangadeiros, cuja saga pelo mar para exigir direitos trabalhistas em pleno Estado Novo era reconstituída (um deles, Jacaré, tragicamente morto em plena filmagem), o ponto alto do documentário é uma versão tentativa de edição do episódio com os pescadores.
Nas últimas três décadas de heroica dedicação, Benamou se tornou a responsável pelo projeto de preservação de “It’s All True”, junto ao Arquivo de Cinema e Televisão da UCLA, em Los Angeles, conseguindo como mais recente triunfo o escaneamento de todo material pela herdeira dos direitos do filme, a Paramount Pictures, anunciado no ano passado. O guia incontornável para esta empreitada, assim como para todos os posteriores (e correntes) estudos e projetos audiovisuais em torno da aventura brasileira de Welles, foi publicado em 2007, pela University of California Press, saindo agora no Brasil com “atraso” e com “alívio”, como frisa Carlos Augusto Calil na orelha do livro.
Benamou cumpre com louvor a tarefa imensa a que se desafiara: recuperar a pré-história do projeto; detalhar sua realização; investigar os bastidores da suspensão das filmagens; “incorporar vozes mexicanas e brasileiras na historiografia do filme”; levantar o impacto da experiência na produção posterior de Welles; e “resgatar os vínculos intertextuais de ‘It’s All True’ com a cinematografia contemporânea e mais recente em âmbito global”. Como ninguém menos que Bill Nichols saudou no lançamento, “não podemos pedir um estudo mais definitivo e inovador”.
Jamais teremos a utopia fílmica de “It’s All True”. Mas, graças a Catherine L. Benamou, ao menos podemos melhor compreendê-la. Não há maior homenagem ao gênio de Orson Welles.