Por Amir Labaki, de Cannes
Cannes Classics confirmou em sua abertura desta terça (14): há mais de meio século, cada nova geração descobre e encanta-se com a exuberância fílmica do épico “Napoleão” (1927) de Abel Gance (1889-1981), o último dos grandes épicos da era silenciosa do cinema. Nesta nova versão restaurada pela Cinemateca Francesa, suas mais de sete horas em duas “eras” a tornam a mais fiel ao original de Gance, do qual apenas a primeira parte, de três horas e quarenta minutos, foi apresentada na aurora da corrente 77a. edição do Festival de Cannes.
Não poderia haver celebração mais apoteótica para a sessão inaugural a mostra dedicada ao cinema de patrimônio em seu vigésimo aniversário. O ciclo foi estabelecido em 2004 pelo diretor geral de Cannes, Thierry Frémaux, à luz de sua experiência paralela à frente do Instituto Lumière de Lyon, uma das mais dinâmicas instituições voltadas para a difusão do cinema clássico e contemporâneo na França, no mesmo endereço em que os irmãos Auguste e Louis Lumière inscreveram seus nomes entre os pais do espetáculo cinematográfico.
O conceito de Cannes Classics foi renovador no rol dos grandes festivais, para além das retrospectivas paralelas já então tradicionais em eventos como a Berlinale, a Mostra Internacional da Arte Cinematográfica da Bienal de Veneza e o Festival de Locarno. Contudo, não era inédito o foco na história do cinema, destacando-se o pioneirismo de dois eventos italianos, a Jornada do Cinema Mudo, de Pordenone e Il Cinema Ritrovato, de Bolonha, criados respectivamente em 1981 e 1986.
Filmes restaurados e documentários sobre cineastas, obras específicas e movimentos marcantes estruturam o cardápio anual de Cannes Classics. A programação deste ano ostenta 30 sessões, sendo dez de celebrações especiais, sete de documentários inéditos e treze de novas cópias de obras recuperadas por processos digitais de ponta. A robusta participação brasileira em Cannes 2024 também se afirma neste ciclo na próxima segunda-feira (20), com a projeção especial de “Bye Bye Brasil” (1980), de Cacá Diegues, em homenagem a Lucy Barreto e Luiz Carlos Barreto no 60o. aniversário de atividades da produtora L C Barreto.
Entre outras efemérides comemoram-se o centenário da Columbia Pictures, com a projeção do clássico noir “Gilda” (1946) de Charles Vidor (um dos títulos, aliás, da primeira edição do festival); os 70 anos de “Os Sete Samurais” (1954), de Akira Kurosawa; o 60o. aniversário do musical francês “Os Guardas-Chuvas do Amor” (1964), que valeu a Palma de Ouro a Jacques Demy, também homenageado por um novo documentário (Jacques Demy, Le Rose et le Noir), de Florence Platarets; e os 40 anos da Palma de Ouro a Wim Wenders por “Paris, Texas” (1984). Dois dos maiores documentaristas em atividade são merecidamente festejados por cópias restauradas de obras-primas de suas filmografias: Frederick Wiseman, com “Law and Order” (1969), e Raymond Dépardon, com o já autobiográfico “Les Annes Déclic” (1984, codireção de Roger Ikhlef).
Retratos monopolizam nesta edição os documentários de Cannes Classics, com exceção do episódio dedicado à realização de “A Confissão” (1970) na série inédita em dez capítulos “O Século de Costa-Gavras” dirigida por Yannick Kergoat. As cinebiografias reverenciam duas atrizes americanas, Elizabeth Taylor (por Nanette Burstein) e Faye Dunaway (Laurent Bouzereau), dois diretores da “Nouvelle Vague” polares em reconhecimento, François Truffaut (David Teboul), e Jacques Rozier (Emmanuel Barnault), além do compositor Michel Legrand (David Hertzog Dessites), o criador dos Muppets, Jim Henson (Ron Howard), e o fundador do Festival de Cinema de Pusan, o sul-coreano Kim Dong-ho (Lyang Kim).
À parte “Napoleão”, a seleção de cópias restauradas abrange produções de quatro continentes realizadas entre 1947 e 1988, todas de ficção. A mais antiga é o filme de aventuras “A Rosa do Mar” do francês Jacques de Baroncelli; a mais recente, “Camp de Thiaroye”, do mestre senegalês Ousmane Sembene, ao lado de Thierno Faty Sow. As três mais célebres a retornar em versões recuperadas são “O Exército das Sombras” (1969), de Jean-Pierre Melville, “Johnny Vai À Guerra” (1971), o único filme dirigido pelo roteirista Dalton Trumbo, e “A Louca Escapada” (1974), de Steven Spielberg.
Em ataque radical pelo governo de Javier Mieli, o cinema argentino reafirma a força de sua tradição com a nova cópia de “Rosaura a las 10”, de Mario Soffici. Por sua vez, em recuperação de seu recente dilúvio, a Cinemateca Brasileira convida, recém-encerrada a festa na Croisette, para a apresentação, no próximo dia 28, de seu atual projeto de restauro de tesouros em nitrato do cinema brasileiro. É a trágica gangorra do cinema na América do Sul em plena exposição.