Por Amir Labaki
Durante quatro noitadas, da
sexta, dia 3, à segunda, dia 6, o Canal Brasil celebra com uma maratona de
filmes os vinte anos de parceira ininterrupta com o É Tudo Verdade na
apresentação de uma faixa semanal exclusivamente dedicada ao cinema
não-ficcional do país. Há mesmo que comemorar. A faixa semanal É Tudo Verdade
no Canal Brasil é a mais longeva janela regular televisiva para documentários
nacionais da história no país. Desconheço também similares internacionais, ao
menos numa mesma emissora e sem ruptura temporal.
Se me permitem dobrar a
autorreferência, esta coluna em parceria com o festival alcança na próxima
semana a marca histórica de 22 anos de publicação consecutiva. Sua criação me
honrou ainda antes do estabelecimento pelo Valor deste caderno. Ambas as iniciativas
se somaram no reconhecimento do rápido prestígio conquistado pelo É Tudo
Verdade como o pioneiro e principal evento exclusivamente focado ao cinema
documentário na América Latina, menos de uma década após sua fundação.
A Maratona É Tudo Verdade
apresenta 19 longas-metragens e 5 curtas-metragens brasileiros que marcaram a
história da faixa e do festival. Fiz a curadoria a partir de títulos exibidos
nestas duas décadas pelo programa cujos direitos de exibição estão vigentes no
Canal Brasil, com pontuais exceções para negociações específicas de obras
incontornáveis nesta história. Destaco dois exemplos.
“Chico Antônio, O Herói com
Caráter” (1983), realizado por Eduardo Escorel para saudar o cantador de cocos
descoberto no Rio Grande do Norte por Mário de Andrade em sua viagem
etnográfica entre 1928 e 1929, inaugurou a faixa em outubro de 2004, firmando-se
como um clássico essencial. Já “A Pessoa Para O Que Nasce” (1999), em que
Roberto Berliner retrata três irmãs cegas que também tocam seus ganzás e cantam
cocos na Paraíba, foi o único curta-metragem a vencer aquela que, na aurora,
era uma única competição brasileira para documentários de todas as durações.
Seis anos depois, Berliner dedicaria um longa-metragem homônimo ao trio,
exibido na abertura do festival de 2005.
A seleção de títulos para a
maratona tem o privilégio de exibir mais 9 longas e 4 curtas-metragens que
venceram as competições nacionais, estreando em televisão posteriormente no
programa semanal. São títulos que completam uma curva temporal de quase duas
décadas, entre “A Negação do Brasil”, o fundamental ensaio de Joel Zito Araújo
sobre os estereótipos e distorções da participação de artistas negras e negros
na telenovela brasileiras entre 1963 e 1997, e “Libelu – Abaixo a Ditadura”
(2000), em que o estreante Diógenes Muniz recupera a história da mais
iconoclasta organização da esquerda estudantil atuante no Brasil durante o
regime militar (1964-1985).
Esteticamente muito distintos,
os cinco curtas-metragens programados pela maratona espelham a originalidade
histórica do formato como laboratório de ponta do cinema e do audiovisual
brasileiros. Além do filme de Berliner, são eles “Abry” (2003), de Joel Pizzini,
“Cordilheira da Amora II (2015)”, de Jamille Fortunatto, “Filhas de Lavadeira
(2020), de Edileuza Penha de Souza, e “Yaõkwa – Imagem e Memória (2021)”, de
Rita Carelli e Vincent Carelli.
Três dos nove filmes dirigidos
por mulheres participantes no ciclo no Canal Brasil tiveram forte impacto no
festival mesmo sem premiações. Exibido em 1996 na edição inaugural, a única sem
mostras competitivas, “Carmen Miranda, Bananas Is My Business” (1995)
consolidou Helena Solberg entre as principais realizadoras do cinema do real
não apenas no país. Com “Lampião da Esquina” (2016), Lívia Perez recuperou a
história de uma das publicações pioneiras da comunidade LGBTQIA+. A filmografia
sobre as vítimas da repressão pela ditadura ganhou em 2020 um título
incontornável com a estreia de Carol Benjamim com “Fico Te Devendo Uma Carta
Sobre o Brasil”.
O título que nos distingue com a
abertura da maratona às 19h do dia 3, “Santiago” (2004), de João Moreira
Salles, abriu o festival em 2006 para instantaneamente se afirmar como uma das
obras essenciais a discutir a própria linguagem do documentário de nossa
filmografia. Não poderiam faltar dois títulos essenciais da produção documental
brasileira, como reafirmado na pioneira votação organizada em 2000 pelo
festival: “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, e “Jango”,
de Sílvio Tendler.
Por fim, cumpria destacar obras
marcantes que nos honraram com sua estreia em TV no É Tudo Verdade no Canal
Brasil mesmo sem participarem do festival. Entre muitas, destacamos “Elena”
(2012), de Petra Costa, “Seca” (2015), de Maria Augusta Ramos, e “Giocondo Dias
-Ilustre Clandestino” (2021), do grande mestre do documentário brasileiro,
Vladimir Carvalho.
Fossem cem os títulos
programados, entre os cerca de mil documentários exibidos nestes 20 anos,
incluindo mesmo clássicos como o curta “Aruanda” (1959), de Linduarte Noronha,
o mais antigo exibido na faixa, ainda seriam insuficientes para um panorama do vigor
do documentário brasileiros. Mais que um ponto de chegada, que a excelência
dessa maratona seja um novo ponto de partida. Fica o convite.