Por Amir Labaki
Foi bonita
a festa, pá. Tomo emprestada a saudação popular (tornada verso por Chico
Buarque) à Revolução dos Cravos em Portugal, cujo cinquentenário celebrou-se
ontem, para um balanço do É Tudo Verdade 2024, encerrado em salas de Rio de
Janeiro e São Paulo no último dia 14.
O retorno
do público às salas, lotando sobretudo, mas não apenas as estreias da robusta e
diversa novíssima safra brasileira, e o reconhecimento da excelência da seleção
desta 29ª edição reafirmaram: superados a crise e o ceticismo disseminados pela
pandemia, o cinema voltou.
As
competições brasileiras de longa e de curta-metragem tiveram vencedores em
momentos polares de suas carreiras, respectivamente com o veterano Renato
Barbieri triunfando com “Tesouro Natterer” e a estreante Gabrielle Ferreira com
“As Placas São Invisíveis”. O júri nacional foi formado pela diretora Edileuza
Penha de Souza, a editora de som Miriam Biderman e o cineasta Walter Lima
Junior.
“Tesouro
Natterer” recupera a trajetória brasileira do naturalista austríaco Johann
Natterer (1787-1843), que em quase duas décadas de expedições pelo país reuniu
para estudo e preservação em Viena um dos maiores acervos etnográficos sobre os
povos indígenas do Brasil. A justificativa do júri destacou-lhe “os
compromissos com pesquisa, com o tempo e a memória”.
A luta pela
aplicação na USP do sistema de cotas para estudantes negros brasileiros está ao
centro, por sua vez, de “As Placas São Invisíveis”. A premiação o distinguiu
“pelo convite de refletir sobre a invisibilidade das barreiras sociais,
políticas e econômicas que muitas vezes impedem a plena participação de todos
os indivíduos na sociedade”.
Uma menção
honrosa foi atribuída na disputa de curtas. “Aguyjevete Avaxi’i”, de Kerexu
Martim, sobre os rituais no plantio de milho pela aldeia Kalipety, foi
destacado “pelo cuidado, pela poesia, mas sobretudo pela reconstrução da vida”.
Composto
pela diretora Helena Solberg, pelo cineasta e ensaísta Mark Cousins e pelo
diretor e curador Sérgio Tréfaut, o júri internacional escolheu como melhor
longa-metragem internacional “Cento e Quatro”, do alemão Jonathan Schörnig, e
como melhor curta “Só a Lua Entenderá”, dirigido pela costa-riquenha Kim
Torres.
Estruturado
a partir do recurso a multitelas acompanhando um resgate em alto-mar, “Centro e
Quatro” foi saudado pelos jurados como “um filme que olha para uma das mais
importantes questões dos nossos tempos - imigração - de uma forma crua,
envolvente e cheia de adrenalina”. Já o curta de Torres, passado numa vila
litorânea, conquistou o prêmio como “um retrato poético e onírico da infância e
do envelhecimento”.
Destacando
o alto nível das competições internacionais, o júri concedeu duas menções
honrosas em cada categoria. Entre os longas, distinguiram-se “Diários da
Caixa-Preta”, da japonesa Shiori Ito, sobre sua batalha na denúncia da
violência sexual da qual foi vítima, e “Zinzindurrunkarratz”, do espanhol Oskar
Alegria, “uma generosa e sensorial peregrinação experimental pela memória e
pelo som.” As menções para curtas foram atribuídas a “Parentesco Indesejado”,
do diretor bielorrusso Pavel Mozhar, sobre as vítimas da guerra da Rüssia na
Ucrânia, e “Como Agradar”, da finlandesa Elina Talvensaari, enfocando as
kafkianas dificuldades do sistema de asilo a imigrantes no país.
Realizada
em parceria com a Cinemateca Brasileira, a 21ª Conferência Internacional do
Documentário apresentou quatro encontros já disponíveis no YouTube do festival.
Na mesa de abertura, Mark Cousins exibiu em première mundial a introdução de 8
minutos da série “A História do Documentário” a qual atualmente se dedica,
rodando nesta sua primeira visita ao país um dos episódios, com ênfase na
produção da década passada.
Os
pioneiros registros etnográficos de Dina e Claude Lévi-Strauss, realizados em
comunidades indígenas de Mato Grosso e Rondônia entre 1935 e 1936, foram
analisados na segunda conferência por Carlos Augusto Calil e Luísa Valentini.
Em debate
com a curadora Anna Glogowski sobre os documentários em torno da revolução que
liquidou o autoritarismo salazarista em Portugal, Sérgio Tréfaut apresentou um
raro levantamento filmográfico e frisou a participação de Glauber Rocha
(1939-1981) nas filmagens do documentário coletivo “As Armas e O Povo” (1974),
rodado no calor da hora. Por fim, no encontro de encerramento em homenagem ao
centenário de nascimento de Thomaz Farkas (1924-2011), o crítico e curador
Rubens Fernandes Junior sintetizou seu papel fundamental na aurora da
fotografia moderna no país, enquanto Eduardo Escorel e Jorge Bodanzky lembraram
o engajamento de Farkas no desenvolvimento do documentário brasileiro, assim
como suas participações na produção de um dos curtas-metragens (Visão de
Juazeiro, 1970) da obrigatória série que se tornou clássica como a “Caravana
Farkas”.
A
celebração anual pelo festival acentua o desafio da hora: condições efetivas de
distribuição e exibição no país para a bela safra revelada. Filmes e público,
há.