Por Amir Labaki
Vale comemorar: “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, e “A Idade da Terra” (1980), de Glauber Rocha, foram destacados na lista de 100 melhores filmes dos anos 1980 em levantamento da IndieWire, um dos principais sites dedicados ao cinema independente nos EUA. Mesmo com pouco mais de duas dezenas de críticos votantes, logo ainda mais restrita que a votação do cinema político de The New Republic que aqui comentei há poucas semanas, e com igual limitação ao universo norte-americano, não deixa de ser um barômetro da corrente cinefilia.
Nenhuma outra produção latino-americana emplacou um posto na lista, dominada como no panteão de The New Republic por mais de metade de filmes realizados nos EUA. Menos grave que no topo dos dez mais votados haja maior diversidade nacional, ainda que as quatro primeiras posições consagrem produções americanas: “Faça a Coisa Certa” (1989), de Spike Lee, “Mishima: Uma Vida em Quatro Capítulos” (1985), de Paul Schrader, “O Enigma de Outro Mundo” (1982), de John Carpenter, e a produção franco-germano-americana “Paris, Texas” (1984), de Wim Wenders.
Seguem-se no alto do panteão o documentário “Shoah” (1985), de Claude Lanzmann, a animação “Meu Amigo Totoro” (1988), de Hayao Miyazaki, “Os Renegados” (1985), de Agnès Varda, “O Raio Verde” (1986), de Eric Rohmer, “Possessão” (1981), de Andrzej Zulawski, e o ensaio documental “Sem Sol” (1983), de Chris Marker. Seis produções ou co-produções francesas, contando a obra-prima de Wenders, portanto.
Além de “Totoro”, duas outras animes ganharam destaque: “Akira” (1988), de Katsuhiroo Ôtomo, na 60ª posição, e na 66ª, “O Túmulo dos Vagalumes” (1988), de Isao Takahata. O cinema japonês está bem representado ainda pela comédia “Tampopo” (1988), de Juzo Itami, na 64ª, e pelo documentário “O Exército Nu do Imperador Segue Adiante” (1987), de Kazuo Ohara, no 85º posto. Em compensação, totalmente esquecida foi a eclosão da poderosa quinta geração do cinema chinês por marcos como “Sorgo Vermelho” (1987), de Zhang Yimou.
Se a liderança de “Faça a Coisa Certa” celebra, com som, cores e fúria, Spike Lee como o mais influente cineasta afro-americano de todos os tempos, não completam uma dezena os filmes da África ou de diretores da diáspora africana. Os dois únicos títulos de todo o continente são “A Luz” (1987), de Souleymaine Cissé, do Mali, e “Wend Kuuni” (1982), de Gaston Kaboré, de Burkina Faso.
Com só um filme entre os dez mais (“Os Renegados”, de Varda) e um segundo apenas no 33º posto (“Sweetie”, de Jane Campion, 1989), o total de dezessete títulos dirigidos por mulheres distancia-se infelizmente do cânone mais equilibrado da votação da revista britânica Sight and Sound de 2022. Reverenciada com a liderança naquela eleição com seu “Jeanne Dielman” (1975), a belga Chantal Akerman surge com “Golden Eighties” (1986) em 87º. na lista de IndieWire.
Nenhum diretor dominou isoladamente a votação. Oito comparecem com dois filmes cada: o alemão Wim Wenders, o canandense David Cronenberg, o francês Éric Rohmer e os americanos Brian De Palma, Jonathan Demme, Martin Scorsese, Robert Zemeckis e Steven Spielberg.
Dois documentários entre os dez mais não é pouco, mas o impacto se relativiza ao encontrarmos apenas treze títulos não-ficcionais na centena destacada. A 53ª posição ocupada por “Cabra Marcado Para Morrer” soa até honrosa, neste quadro. O comentário de Guilherme Jacobs na IndieWire o reconhece como “uma incrível façanha de realização cinematográfica”, saudando “Cabra” como “um retrato agridoce de resiliência e luta que retrata com sentimento e detalhes extraordinários como é difícil construir algo, seja um país, uma família, sindicato ou filme - e como reconstruir essas coisas pode parecer impossível depois de destruídas, seja por tempo perdido ou uma bala”.
Glauber Rocha ri por último com o reconhecimento ainda que tardio à sua última parábola sobre a civilização brasileira. “A Idade da Terra” foi torpeado por todos os lados desde sua pré-estreia mundial no festival de Veneza de 1980, que dividiu o Leão de Ouro entre “Atlantic City”, de Louis Malle, e “Glória”, de John Cassavetes. Nenhum dos dois se encontra na lista.
A honrosa lembrança descarrilha, porém, quando o texto do editor-chefe de IndieWire, Christian Blauvelt, deturpa toscamente a participação da Embrafilme na produção brasileira da época ao afirmar “o fato de Rocha ter pegado algum dinheiro da junta militar do Brasil para fazê-lo”. Nem mesmo o elogio de conclusão (“o exultante assalto de Rocha aos sentidos deixa você com nada menos que o êxtase de ver um novo tipo de cinema chegar para a vida bem diante de seus olhos”) desfaz o estrago.