Por Amir Labaki
Passados os frenesis da estreia e da provável disputa pelo próximo Oscar, “Oppenheimer”, de Christopher Nolan, deveria ser exibido em programa duplo com o documentário “Clarão/Chuva Negra: A Destruição de Hiroshima e Nagasaki” (2007), de Steven Okazaki. Disponível em streaming pela HBO Max, o longa de estreia do mestre nipo-americano ainda não foi superado em sua abordagem do horror atômico que Nolan se recusou a reencenar, num admirável gesto de contenção para um épico que tem como um dos eventos centrais os ataques americanos ao Japão, em 6 e 9 de agosto de 1945, que encerraram a Segunda Guerra (1939-1945).
Não se confunda o documentário de Okazaki com a ficção quase homônima, “Chuva Negra” (1989), que Shohei Imamura (1926-2006) ostenta no topo de sua estupenda filmografia, a partir do romance original de Masuji Ibuse sobre uma garota sobrevivente de Hiroshima (Estação Liberdade, 2011, 328 págs, R$ 73) A dívida literária central para “Clarão/Chuva Negra” é um clássico do jornalismo: “Hiroshima”, de John Hersey (1914-1993), cuja edição brasileira mais recente é da Companhia das Letras (176 págs, R$ 62,90).
Publicada originalmente como a primeira reportagem a ocupar toda uma edição da New Yorker, em 31 de agosto de 1946, “Hiroshima” apresentou a pioneira e dolorosa descrição por seis sobreviventes do dia do ataque nuclear inaugural. Correspondente de guerra com experiência como romancista, Hersey conseguiu driblar as severas restrições de acesso à cidade pelas tropas americanas de ocupação comandadas pelo general Douglas MacArthur (1880-1964).
Durante duas semanas, entre fim de maio e início de junho, o repórter testemunhou a quase total destruição da cidade e selecionou, entre as dezenas de entrevistados, meia dúzia de dilacerantes depoimentos: duas mulheres, dois médicos e um religioso japoneses, mais um jovem padre alemão. Hersey os estruturou como num coral no texto estudadamente sóbrio que revelou à opinião pública americana, e imediatamente mundial, a real dimensão da barbárie atômica.
Quase oitenta anos após sua publicação, “Hiroshima” permanece leitura devastadora e obrigatória. Uma detalhada reconstituição de sua produção e edição, que contou com a decisiva supervisão na New Yorker de Harold Ross (1992-1951) e William Shawn (1907-1992), encontra-se em “Fallout – The Hiroshima Cover-up and the Reporter Who Revealed It to the World”, de Lesley M. M. Blume (Simon & Schuster, 2020, 288 págs., US$ 27, ainda sem edição brasileira).
Sem referência explícita, quase seis décadas depois Steven Okazaki refez os passos de Hersey, estendendo-os a Nagasaki. De uma centena de entrevistas com “hibakusha” (os sobreviventes dos bombardeios nucleares), selecionou para partilharem suas traumáticas históricas para o filme apenas catorze, só dois já jovens adultos à época do ataque. Um contraponto amplifica o horror, na tentativa de justificação por quatro participantes americanos dos bombardeios.
“Essa é a história das únicas pessoas que sobreviveram a um ataque nuclear”, alerta o letreiro de abertura. “Clarão/Chuva Negra” se desenvolve então em três partes, “Os Sobreviventes”, “A Bomba” e “O Resultado”. Como na narrativa de Hersey, as entrevistas tecem a teia do inimaginável -até aqueles dias. Em Hiroshima, 140 mil pessoas foram mortas; 70 mil em Nagasaki. Como consequência dos efeitos retardados da radiação, mais 160 mil vítimas fatais somaram-se desde 1946.
Uma série de quadros se agarra a memória em “Os Sobreviventes”, com alguns dos entrevistados segurando, em pé, na altura do peito, uma foto na infância, em tomadas solitárias nas ruas das cidades no início deste século. Em “A Bomba”, Okazaki busca suprir a ausência de imagens filmadas do momento mesmo do impacto nuclear por meio de desenhos feitos por vítimas, incluindo de uma célebre série de manga, “Gen Pés Descalços” (Editora Conrad, 2011, 280 págs., R$ 39,90). Para sempre desafiará qualquer olhar a documentação audiovisual das mortes e mutilações criteriosamente revisitada em “O Resultado”.
“Clarão/Chuva Negra” e “Oppenheimer” são assim complementares. Vencedor do Emmy e um dos 15 finalistas ao Oscar, o documentário de Okazaki já garantiu seu posto na história. Quanto à cinebiografia do “pai da bomba atômica”, seria francamente injusto louvá-lo apenas por algo que não mostra.
O J. Robert Oppenheimer (1904-1967) de Nolan, lindamente interpretado por Cillian Murphy, ecoa o Galileu de Brecht: “O precipício entre vocês (cientistas) e a humanidade pode crescer tanto que ao vosso grito de alegria, de quem descobriu alguma coisa nova, responda um grito universal de horror”. Hollywood parecia ter desistido de jogar nesta liga.