Por Amir Labaki
Quase quarenta anos depois de sua
morte por demais precoce, François Truffaut (1932-1984) continua a
encantar com descobertas em seu baú. Um revelador terceiro volume da
correspondência do diretor de “Os Incompreendidos” (1959) e “Jules e Jim
-Um Mulher para Dois” (1963) acaba de sair na França.
“Mon Petit Truffe, Ma Grande
Scottie – Correspondence 1960-1965” (Denoël, 452 págs, 24,90 euros)
reúne a correspondência entre o cineasta e a jornalista e tradutora
Helen Scott (1915-1987). Coube a ela nada menos o privilégio de fazer a
tradução simultânea das conversas entre Truffaut e Alfred Hitchcock
(1899-1980) que serviram de base para uma das obras-primas da
bibliografia cinematográfica, o volume “Hitchcock-Truffaut: Entrevistas”
(Companhia das Letras, 2004, 368 págs, R$ 127,90), lançado
originalmente em 1966 e editado no Brasil pela primeira vez pela
Brasiliense vinte anos depois.
No delicioso documentário de Kent
Jones reconstituindo os bastidores da edição do livro
(“Hitchcock/Truffaut”, 2015), além de inúmeras imagens de Scott,
escutamos a agilidade da voz dela em plena tradução simultânea,
inglês-francês, das mais de 23 horas gravadas durante oito dias de
agosto de 1962 nos Estúdios Universal em Los Angeles. As fitas da
gravação foram recuperadas em 1993 pelo crítico Serge Toubiana,
ex-editor dos Cahiers du Cinéma e ex-diretor da Cinemateca Francesa.
Roteirista do filme de Jones,
Toubiana co-dirigira doze anos antes com Michel Pascal o mais abrangente
documentário sobre Truffaut, “François Truffaut – Retratos Roubados”.
Na sequência, escreveu com Antoine de Bacque a melhor biografia do
diretor de “O Último Metrô” (1980), lançada na França em 1996 e editada
aqui dois anos depois pela Record. Em 2020, Toubiana dava continuidade à
sua truffautiana biografando também Helen Scott em “L’Amie Américaine”
(Stock, 300 pags, 20 euros), ainda inédito no Brasil.
Não surpreende, assim, que ele
feche agora o círculo assinando a organização do mais focado volume da
trilogia epistolar (1988, 2022, 2023) de Truffaut. Truffaut e Scott
conheceram-se em janeiro de 1960 em Nova York, na viagem de batismo do
diretor aos EUA. “Os Incompreendidos” acabara de estrear com imenso
sucesso no país, conquistando o prêmio de melhor filme estrangeiro da
associação de críticos novaiorquinos. Helen Scott deu-lhe às
boas-vindas, ainda no aeroporto, como responsável pela imprensa do
French Film Office.
Toubiana a descreve como
“cultivada, francófona, cinéfila e dotada de um sólido senso de humor
judeu-novaiorquino”. Ligada à esquerda americana, Scott certamente
conquistou pontos com Truffaut ao narrar sua experiência na resistência
francesa ao nazismo desde Brazzaville, no Congo. A empatia foi imediata.
O volume de correspondência é
aberto logo depois (3/2/1960), numa “carta profissional” de Scott,
dedicada a um balanço da repercussão jornalística da visita, não sem
toques pessoais, como a conclusão lembrando o próximo aniversário de
Truffaut (6/2), a ser celebrado por ela com “uma taça por sua saúde, sua
felicidade, seu sucesso e nossa amizade”. Será ela uma missivista muito
mais ativa, com um ajuste de tom estabelecendo-se ao longo do primeiro
ano de cartas.
Truffaut é para ela um amor
platônico, além de seu cineasta francês predileto; para Truffaut, Scott
se torna uma espécie de “mãe americana”, além de colaboradora essencial
em dois projetos: o livro com Hitchcock e a demorada concretização de
sua filmagem de “Fahrenheit 451” (1966), o romance distópico de Ray
Bradbury. As cartas não demoram a se aproximar do desejado por ela, “uma
troca verdadeira, combinando trabalho e vida íntima”, como bem define
Toubiana.
O primeiro quarto do livro
(1960/1961) ilumina o impacto da acolhida inicial da “Nouvelle Vague”
nos EUA. Bastidores valiosos da concepção e realização das entrevistas
para “Hitchcock/Truffaut” se expandem na mais longa das partes, dedicada
ao ano de 1962. As agruras do esticado processo de edição, efetivada
apenas pela publicação quatro anos mais tarde, pontuam a correspondência
até o fim, em novembro de 1965.
No entretempo, a colaboração se
intensifica, com Scott sendo parceria fundamental para a produção de
“Fahrenheit”, fracasso que se tornaria o único filme inglês de Truffaut.
Scott discute as diversas versões do roteiro, assinando “diálogos
adicionais” e acompanhando as filmagens em Londres. Findas estas, ela
muda-se para Paris em 1966, assessorando toda uma geração de jovens
cineastas franceses, não apenas quanto a incursões no mercado americano.
As duas últimas cartas são
endereçadas, de Nova York, ao “caro cúmplice”, e a “François, meu
coração”, já em Londres. Toubiana encerra a coletânea com uma carta de
Truffaut a Hitchcock, com detalhes sobre o avanço da edição e três
questões finais de esclarecimento -traduzida por Scott. Quinze anos
depois, na última imagem do álbum fotográfico, ei-los posando lado a
lado, risonhos em Paris. Um círculo se fechava.