Por Amir Labaki
Uma calorosa sensação de encerramento de um ciclo emana do lançamento mundial, no último dia 19, do documentário “Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema”, de Aída Marques e Ivelise Ferreira, dentro do ciclo Cannes Classics do festival francês. Meio século dos sessenta anos de carreira cinematográfica de Nelson pôde ser acompanhado na Croisette, desde a seleção oficial de seu terceiro e mais celebrado filme, “Vidas Secas” (1964), até a projeção especial de sua antepenúltima obra, o documentário “A Música Segundo Tom Jobim” (2012, codirigido por Dora Jobim).
Quase metade de seus longas-metragens fizeram sua estreia internacional em Cannes, na seleção oficial ou na principal mostra paralela, a Quinzena dos Realizadores, além da première mundial de seu episódio (Cinema de Lágrimas, 1995) para a telessérie “Century of Cinema”. Do radar de Cannes escaparam, entre os clássicos incontornáveis de Nelson, apenas seus dois primeiros filmes, “Rio, 40 Graus” (1955) e “Rio, Zona Norte” (1957).
Nada de essencial escapa de “Vida de Cinema”, correalizado por sua viúva, Ivelise, e por Aída, cineasta que leciona na UFF, num dos dois cursos que contou com Nelson entre seus fundadores (o primeiro sendo o pioneiro da UnB, nos anos 1960). Descontados alguns de seus curtas e documentários de ocasião e longas menos inspirados da parte final de sua carreira (A Terceira Margem do Rio e Brasília 18%), eis Nelson repassando minuciosamente sua filmografia, num autêntico “Nelson conta Nelson”. O foco concentra-se sobre seu cinema, com uma carinhosa introdução sobre sua infância e formação.
Nessa estrutura, a referência mais próxima, entre os documentários biográficos sobre os próceres do Cinema Novo, é “Deixe Que Eu Fale” (2007), em que Eduardo Escorel reconstituía a carreira de Leon Hirszman (1938-1987) por meio um amplo acervo de registros fílmicos com o diretor de “Eles Não Usam Black-Tie” (1981). “Vida de Cinema” edita uma narrativa autobiográfica a partir de entrevistas inéditas e depoimentos de arquivo de Nelson, intercalando pontualmente apenas três testemunhos de parceiros de Nelson.
Grande Otelo (1915-1993) classifica como seu “grande papel” o compositor de samba em torno do qual gira “Rio, Zona Norte”. O produtor e fotógrafo Luiz Carlos Barreto explica como debutou na direção de fotografia em cinema, para revolucionar à luz dos filmes nacionais, em “Vidas Secas. Por fim, o escritor Jorge Amado recorda a parceria para a adaptação de seu romance “Tenda dos Milagres” (1977), frisando: “nada que está no livro e no filme foi inventado”.
Paulista filho de uma família de alfaiates, formado em Direito pelo Largo de São Francisco, ligado aos comunistas desde a juventude, Nelson resume em poucas frases as influências formadoras: John Ford, de um lado, Sergei Eisenstein, do outro. Mas foi o mestre neorrealista Roberto Rossellini, reconhece, quem “deu uma balança em nossas cabeças”. “O neorrealismo como motivação ideológica foi o fator mais importante do nascimento do cinema brasileiro independente, que mais tarde desemboca no Cinema Novo”, explica.
Produções despojadas, elencos mistos de profissionais e amadores, filmagens em ruas, engajamento social - os ecos de “Roma, Cidade Aberta” (1945) e “Ladrões de Bicicleta” (1948) soavam forte já em seu longa-metragem de estreia, uma obra-prima de saída, “Rio, 40 Graus”, cuja estúpida censura catalisou ainda maior sucesso de público. “Rio, Zona Norte”, “uma história baseada na vida do (sambista) Zé Keti”, completou o díptico. Arrasado pela crítica da época, seu naufrágio nas bilheterias o forçou a uma pausa de arrumação, como redator do Jornal do Brasil.
Uma viagem ao Nordeste já em 1959 fez germinar o projeto de seu segundo e talvez maior filme, a adaptação de “Vidas Secas” de Graciliano Ramos (“um grande pai cultural”), que uma dramática enchente na Bahia o forçou a adiar. O improvisado “Mandacaru Vermelho” (1959) e a encomenda para adaptar “Boca de Ouro” (1963), de Nelson Rodrigues, o amadureceram para o salto maior.
“Acho que ‘Vidas Secas’ é filme em que eu consegui resolver a equação”, reflete Nelson. “Os meios estavam combinando com a ambição do roteiro”. Filme pronto, eclode o trágico golpe civil-militar de 1964. Nada deteve, porém, a estreia em Cannes, com “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha na seleção oficial. O Cinema Novo ganhava o mundo.
Nelson retornou seguidas vezes ao festival francês, inclusive com obras mais experimentais (Como Era Gostoso Meu Francês; Azyllo Muito Louco) do que chamou de “época de exílio em Parati”, no início dos anos 1970. Nenhuma teve o impacto da abertura da Quinzena com sua volta ao universo de Graciliano, “Memórias do Cárcere” (1984), “uma história de amor à liberdade”.
“No ‘Vidas’”, lembra Nelson, “nós estávamos entrando no período ditatorial; no ‘Memórias’, estávamos saindo”. Agora que por pouco saímos do espectro de outro pesadelo autoritário, “Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema” combina uma encantadora homenagem a um retumbante grito de alerta.