Por Amir Labaki
Ironias da história: exatamente quando documentários predominam entre os títulos brasileiros na seleção oficial do corrente Festival de Cannes, um balanço do Observatório Brasileiro do Cinema e Audiovisual (OCA) da Ancine informa que menos de 2% (1,9%) dos recursos aplicados na comercialização de filmes nacionais em 2022 atenderam obras não-ficcionais. “Retratos Fantasmas”, de Kléber Mendonça Filho, em Sessão Especial fora de concurso, e “Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema”, de Aída Marques e Ivelise Ferreira, no ciclo Cannes Classics, fazem suas estreias mundiais hoje (sexta, 19) no Palácio do Festival na Riviera francesa.
O informe da OCA acentua o fato de que a distribuição, marketing e exibição são o calcanhar de Aquiles do documentário brasileiro. Dos investimentos em produção, 16,8% foram feitos em filmes não-ficcionais, porcentagem similar, por exemplo, ao cenário francês, segundo boletim recente do CNC (Centro Nacional de Cinematografia e Imagem Animada). A pergunta que fica é como explicar a desproporção nacional, investindo-se em títulos fadados à virtual invisibilidade nas salas de cinema.
Marcado desequilíbrio registra-se ainda no valor médio dos aportes para documentários no Brasil e na França. Aqui, 56% dos projetos não-ficcionais receberam menos de R$ 1 milhão de reais; lá, apenas 39,9% tiveram aportes de menos de 1 milhão de euros (cerca de 5,6 milhões de reais), com um investimento médio de 558 mil euros (cerca de R$ 3,1 milhões).
A política audiovisual francesa para o documentário vai além das melhores condições de produção. Como boletins anuais do CNC detalham, e já tratamos em colunas anteriores, toda uma estratégia de investimento em distribuição, publicidade e exibição permite mais efetiva presença de mercado às obras ficcionais, com aportes que alcançam em média cerca de 20% dos valores aplicados na produção.
Apesar do vácuo neste sentido no Brasil, nem é preciso recuperar exemplos do passado remoto para frisar o potencial em salas do documentário nacional. No ano passado, “Maria Bethânia – Ninguém Sabe Quem Eu Sou”, de Carlos Jardim, com cerca de 20 mil espectadores, quase emplacou entre as 20 melhores bilheterias nacionais de 2022; o posto foi conquistado por “45 do Segundo Tempo”, de Luiz Villaça, com pouco mais de 27 mil ingressos vendidos.
Os números historicamente achatados espelham um quadro crítico geral. Ainda em recuperação diante dos efeitos devastadores da pandemia para o mercado cinematográfico, brasileiro como mundial, segundo o informe preliminar lançado pela Ancine em março último, a bilheteria em salas no ano passado alcançou a marca de 95,1 milhões de ingressos, cerca de 40% menor ainda do que o resultado de 2019. Somente 4,2% desse público saiu de casa para assistir a filmes brasileiros.
Apenas as duas produções nacionais mais vistas superaram, e por pouco, a marca de 500 mil espectadores: “Turma da Mônica: Lições”, de Daniel Rezende (542.674), e “Tô Rica!2”, de Pedro Antônio Paes (515.185). Em 2022, todos os filmes brasileiros, somados, venderam 4 milhões de ingressos; em 2019, o ano anterior à pandemia, a marca foi de 24,1 milhões.
Para prosseguir na comparação com o mercado francês, segundo informe do CNC em 2022 foram vendidos 152 milhões de ingressos, cerca de 25% abaixo do auferido em média no período imediatamente pré-pandemia (2017-2019). O market share da produção francesa foi de 40,9%, uma ligeira elevação frente a 2017-2019 (37,2%), com 62,2 milhões de ingressos vendidos para espectadores de filmes gauleses.
No topo das bilheterias em ambos os países, o de sempre: blockbusters de continuações. No Brasil, o filme mais visto no ano passado foi “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, de Sam Raimi, com pouco mais de 8,3 milhões de ingressos. Na França, o campeão foi “Avatar: O Caminho da Água”, de James Cameron, com 7,6 milhões de espectadores.
O sucesso de “Doutor Estranho”, lembre-se, não pode ser desvinculado do fato de ter ocupado, no auge do lançamento, nada menos que 2585 das 3400 salas do circuito cinematográfico brasileiro. Da mesma forma, batemos em pouco mais de 4% do público num contexto de evaporação de mecanismos históricos de proteção como a cota de tela.
Felizmente em fevereiro passado a Ancine trouxe a público novas propostas de “renovação da política de cota de tela”, incluindo sua readequação aos novos tempos, substituindo dias de exibição por número de sessões, e relançando o debate sobre a “ocupação predatória” do mercado. À luz do paradoxo de Cannes, tomara uma nova política para os documentários entre em pauta.