Por Amir Labaki
Depois de três edições concentradas em exibições on-line devido às restrições sanitárias da epidemia de Covid-19, o É Tudo Verdade retorna plenamente às salas de cinema de São Paulo e do Rio de Janeiro, a partir dos dias 12 e 13 da próxima semana. Nesta 28ª edição serão exibidos nada menos que 72 documentários, de longa e curta-metragem, brasileiros e internacionais, com entrada gratuita em seis telas paulistanas e três cariocas.
A sessão de abertura na Cinemateca Brasileira em São Paulo apresenta um dos mais importantes documentários sobre a própria realização de documentários, “Subject”, das diretoras americanas Jennifer Tiexiera e Camilla Hall. Lançado no Festival de Tribeca do ano passado, “Subject” discute a ética na relação entre documentaristas e pessoas retratadas.
Tiexiera e Hall indagam quanto à responsabilidade dos cineastas para quem retratam, não apenas durante a filmagem, a edição do material bruto e o lançamento dos filmes, mas também para o período posterior ao impacto das estreias. A originalidade da abordagem reside em dar voz às pessoas tornadas personagens, como Arthur Agee (Basquete Blues, 1994), Margaret Ratliff (a série A Escadaria, 2004-2018) e Mukunda Ângulo (The Wolfpack, 2015), engajados também co-produtores, e não aos cineastas responsáveis pelos filmes.
O Estação Net Botafogo sedia, por sua vez, no dia 13, a abertura no Rio com a estreia mundial de “1968, Um Ano na Vida”, de Eduardo Escorel. O ano mítico de manifestações mundo afora pela liberdade, política e individual, é revisitado com raríssimo foco íntimo e pessoal. Mergulhamos no cotidiano em 1968 da escritora Sílvia Escorel, irmã do cineasta, a partir de seu diário, de uma nova carta de balanço da experiência, e de imagens e sons do acervo internacional.
É como um lado B de “No Intenso Agora” (2017), o documentário de arquivo de João Moreira Salles montado por Escorel e Laís Lifschitz. A ênfase deste repousava sobretudo na dimensão pública da mobilização de 1968, Paris e Praga em primeiro plano; agora o convite para uma releitura sob uma perspectiva privada, tendo o foco principal aquele conturbado ano brasileiro, em que os protestos contra a ditadura instaurada em 1964 foram respondidos com o violento fechamento do regime com a decretação do AI-5 naquele cinza dezembro.
Se o retorno a 1968 tem se provado irresistível, o retorno ao cinema do pioneiro mineiro Humberto Mauro (1897-1983), um dos homenageados desta edição, é obrigatório. Iniciada ainda na era silenciosa em Cataguases, Minas, sua obra ficcional (Braza Dormida; Ganga Bruta) o estabeleceu como um dos primeiros autores imediatamente reconhecíveis de nossa cinematografia. Autodefinido como “grande admirador do documentário, modalidade de cinema que tem permitido maior liberdade de ação aos cineastas”, é no nada menos essencial Mauro documentarista que se concentra o ciclo com curadoria de Sheila Schvarzman e Eduardo Morettin.
Como escreveu Schvarzman, “como diretor dos filmes do Ince (Instituto Nacional de Cinema Educativo), órgão criado em 1936 para ser um meio avançado de educação, (Mauro) participou como o antropólogo Edgard Roquette-Pinto, seu diretor, da empreitada de, pelas imagens de seus vultos históricos, suas riquezas naturais, suas descobertas científicas e tecnológicas, criar um novo país”. Daquele “novo inventário”, que alcançaria mais de três centenas de títulos até 1967, o festival apresenta uma dezena dos curtas-metragens incontornáveis, preservados pela Cinemateca Brasileira, e acrescidos de dois documentários sobre o cineasta, assinados por David Neves (1975) e André di Mauro (2018).
Com apoio da Embaixada da França no Brasil, a rara projeção da íntegra da série “História(s) do Cinema” (1987-1998) se impôs como homenagem a Jean-Luc Godard (1930-2022). Na extensa filmografia em ao menos quatro grandes fases de mais de sete décadas de produção, entre ficção, documentário, variações e ensaios, pareceu oportuna a escolha do grande monumento audiovisual que inicia o período final de sua obra.
Não se trata, vale esclarecer, de um projeto de vocação histórica ou didática, aos moldes dos realizados, para ficar em dois exemplos, por Martin Scorsese sobre o cinema americano (1995) e o italiano (1999) ou por Mark Cousins (2011). “História (s) do Cinema” é um vasto ensaio poético, em quatro horas e meia divididas em oito episódios, sobre arte e cinema, história e sociedade, catalisado no cineasta-pensador a partir de 495 filmes, mas também 148 livros, 135 quadros, 93 peças musicais.
Visando prolongar a experiência da série, recomendo a leitura do texto de Godard editado no Brasil, em tradução de Zéfere, pelo Círculo de Poemas da editora Fósforo no ano passado. Torna-se assim mais bela essa jornada a um só tempo emotiva e intelectual com o cinema - “nem uma arte/nem uma técnica/um mistério”.