Por Amir Labaki
Afinal aconteceu o esperado e a Academia piscou para uma nova geração que parece hiperconectada a tudo menos o Oscar: “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, a caleidoscópica comédia social da dupla Os Daniels, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, venceu no último domingo nada menos que sete dos prêmios, incluindo melhor filme, direção e roteiro original.
Foi apenas o terceiro triunfo no Oscar de realização de um duo de cineastas, sucedendo a Robert Wise e Jerome Robbins de “Amor, Sublime Amor” (1961) e os irmãos Ethan e Joel Coen por “Onde Os Fracos Não Tem Vez” (2007). Os Daniels estabeleceram a parceria na década passada codirigindo videoclips e co-realizaram anteriormente apenas um longa-metragem juntos, a comédia macabra “Um Cadáver Para Sobreviver” (2016).
“Tudo Ao Mesmo Tempo Agora” articula, num carrossel audiovisual frenético, a tentativa de uma sino-americana (Michelle Yeoh, a primeira atriz asiática a vencer o Oscar de melhor atriz) de sobreviver a uma avalanche de crises, a um só tempo existencial, familiar e financeira. A solução passa por uma batalha no multiverso, em que a vitória contra a arquivilã Jobu Tupaki (Stephanie Hsu, intérprete também da filha de Yeoh) exige que a protagonista vivencie existências alternativas que poderia ter trilhado.
A Evelyn Wang de Yeoh é uma espécie de Alice de Lewis Carroll da era da anime e do multiverso, dos games e das séries de streaming. “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora” é como uma versão turbinada, em referências de uma geração anterior, do cruzamento entre “Matrix” (1999-2021) e os mundos paralelos das narrativas surreais de Haruki Murakami (Crônica do Pássaro de Corda; 1Q84).
Atravessei as quase duas horas e meia do filme dos Daniels como uma experiência rasa e exaustiva, quando não exasperante. Há que registrar, contudo, o bom desempenho internacional nas bilheterias e sua excelência técnica, a começar da edição impressionante do jovem Paul Rogers, premiado com o Oscar da categoria. Para bem e para mal, “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora” reflete o Zeitgeist como nenhum outro dos concorrentes ao prêmio principal deste ano.
Aos reconhecimentos pela contemporaneidade, o filme dos Daniels somou dois prêmios de coadjuvantes por tradição hollywoodiana. Pelo papel da auditora do imposto de renda que ameaça Evelyn, Jamie Lee Curtis conquistou sem maior brilho o Oscar jamais conquistado por seus pais, os astros d’outrora Janet Leigh (1927-2004) e Tony Curtis (1925-2010). Já o ex-refugiado vietnamita Ke Huy Quan protagonizou com sua premiação outra saga de resiliência de um ex-ator mirim, quase quatro décadas depois da revelação em “Indiana Jones e o Templo da Perdição” (1984).
Algo similar marca, por sua vez, o Oscar de melhor ator de Brandon Fraser por “A Baleia”. Carismático protagonista de matinês na década de 1990 (A Múmia; Endiabrado), Fraser finalmente deu a volta por cima numa performance marcante, como um escritor de obesidade mórbida, para além do feito de maquiagem também distinguido pela Academia.
Dirigida pelo alemão Edward Berger, a nova versão de “Nada de Novo no Front”, clássico romance antimilitarista de Erich Maria Remarque sobre o massacre dos jovens nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), consagrou-se como a segunda produção mais premiada da noite. Seca e crua, conquistou quatro estatuetas, incluindo a para melhor filme internacional. Não foi o único eco de revolta frente à guerra da Rússia de Putin na Ucrânia.
A mensagem mais direta veio com o prêmio de melhor documentário de longa-metragem para “Navalny”, de Daniel Roher, exibido pela primeira vez no Brasil na competição internacional do É Tudo Verdade do ano passado. Um dos principais líderes oposicionistas russos, Alexei Navalny padece hoje em condições precárias de saúde sob novo período de cárcere, depois de retornar a seu país depois de sobreviver a um atentado por envenenamento. A sequência do filme em que Navalny identifica num telefonema um dos sicários se agarra à memória.
O contundente discurso de Roher no palco do Dolby Theatre de Los Angeles foi mais de alerta do que agradecimento. Complementou-o Yulia, a esposa do dissidente: “Meu marido está na prisão apenas por dizer a verdade”. O multiverso não monopolizou o 95º Oscar.