Por Amir Labaki
Um mal-estar ronda os documentaristas: o paradoxo entre uma inédita valorização, inclusive mercadológica, do selo documental e a perda de poder decisivo e econômico de realizadores, produtores e técnicos. Há outras crises em plena ebulição, como discutido extensamente em dois artigos recentes na imprensa americana, um de setembro passado em The Hollywood Reporter e outro no semanário New York.
A pandemia acelerou o processo. Como notam Mia Galuppo e Katie Kilkenny no primeiro texto, “segundo a Parrot Analytics, o número de documentários originais em streaming cresceu cerca de 77% entre janeiro de 2019 e julho de 2022, enquanto a “demanda’ nos EUA (a partir de uma métrica baseada em fatores que incluem mídia social e compartilhamento de arquivos) cresceu cerca de 186%”.
Se cresceu o mercado, de que reclamam? A questão é qual mercado. Os documentários de longa-metragem em sala jamais recuperaram as bilheterias pré-pandemia, regularmente modestas mas com um que outro sucesso eventual. No Brasil, onde nunca se estabeleceu um processo de lançamento profissional devidamente alavancado por sessões regulares no circuito de cinemas com o essencial investimento em marketing e publicidade, a crise é historicamente estrutural.
O atual mercado são as plataformas de streaming. Entrevistado por Reeves Wiedeman da New York, o produtor Dan Cogan, da Story Syndicate (“Harry & Meghan”, Netflix), foi ao ponto: “As pessoas falam na era de ouro do documentário, e foi excitante ser parte daquilo. É também verdade que nós deixamos aquele período há três ou quatro anos e vivemos agora na era corporativa do documentário”.
Wiedeman sintetiza a fórmula da produção para streaming, seja para longas quanto para séries não-ficcionais. ““Faça rápido, veja o que funciona, repita”.
Ele mesmo desenvolve: “As plataformas tinham dados suficientes para saber o que as pessoas gostam -assassinatos, celebridades, episódios que terminam à beira do abismo- e, em torno de 2020, quando a Netflix estava lançando um novo documentário ou docussérie por semana, as plataformas estavam competindo menos por prêmios do que pelo próximo sucesso de crime verdadeiro (‘true crime’)”. Soa familiar, incluindo os braços nacionais dos streamings planetários e as plataformas brasileiras?
Por limite de espaço (as íntegras das reportagens se encontram on-line), me concentro em controvérsias potencializadas pelos dois subgêneros dominantes, as histórias reais de crime e as produções não-ficcionais sobre celebridades.
Creio já haver um certo esgotamento nas séries de “true crime”, muito devido à estrutura engessada. Toda uma bíblia estruturante dita a forma (Wiedeman cita um exemplo concreto), estabelecendo guias de desenvolvimento narrativo, com a questão central, novas oportunidades, crises, guinadas e suspenses cronometrados.
Os modelos são os sucessos pioneiros: “Staircase” (2004-2018, HBO, depois Netflix), “Making a Murderer” (Netflix, 2015-2018), “The Jinx” (HBO, 2015). Nenhum deles, contudo, foi produzido seguindo uma fórmula e segundo a acelerada dinâmica de produção para streaming.
Quanto a este ritmo industrial, ambos artigos lembram uma exigência de consequências perversas tantos do ponto de vista estético quanto trabalhista. De acordo com a Aliança dos Editores de Documentários, referência para os dois textos, recomenda-se um cronograma de edição de um mês de trabalho por 10 minutos da obra pronta, ou nove meses para um filme de 90 minutos.
Editores ouvidos pela Hollywood Reporter afirmam que “foram recentemente solicitados a completar filmes em cinco ou seis meses”. Na New York, Wiedeman cita o caso de uma série de “true crime” em que a produtora exigia duas semanas de filmagem e dez semanas de edição para um diretor experiente, que pediu anonimato. Em resumo, “faça rápido”.
Todo um debate ético em torno da remuneração dos protagonistas e participantes de produção não-ficcionais reacendeu-se naturalmente com o aquecimento da demanda por histórias reais. É um preceito tradicional do documentário como do jornalismo não pagar por entrevistas. Mas quanto tempo resistirá esta barreira de integridade com a crescente competitividade, orçamentos em elevação e as cifras astronômicas (e grandes audiências) mobilizadas pelos chamados “celebrity documentaries”?
Perdoe o excesso de citações nesta semana, mas a questão me parece exemplarmente resumida numa declaração a New York de Joseph Patel, o produtor de “Summer of Soul”, vencedor do Oscar no ano passado: “Uma vez que o artista está envolvido e gerenciamento está envolvido, você nem sempre consegue uma história autêntica. (...) O que há de errado em querer passar um tempo no mundo de Billie Eilish? O que há de errado em querer assistir a Elton John? Nada. Mas não é realmente um documentário. É entretenimento”. De estigma, a definição fez-se valor.