Por Amir Labaki
A polêmica em torno das drásticas alterações no cânone cinematográfico na votação da crítica organizada pela revista britânica Sight and Sound, simbolizada sobretudo pela elevação ao topo de “Jeanne Dielman” (1975) de Chantal Akerman como revelado há duas semanas, me parece levar o jogo a sério demais. Saudei na semana passada o aperfeiçoamento do processo de votação, tornando-o mais inclusivo, mas é preciso frisar o quanto é enganosa a manchete “The Greatest Films of All Time” (os maiores filmes de todos os tempos).
O sismógrafo da revista britânica melhorou, mas o que registra não é um ranking de excelência cinematográfica, mas sim como a comunidade cinematográfica se vê refletida na história do cinema. Isto é, trocando de metáfora, a lista da Sight and Sound é sobretudo um espelho fílmico da sociedade. Nada mais natural que sua nova edição repercuta intensamente o impacto da nova onda feminista após o movimento “#MeToo”, da renovada militância antirracista a partir do “#OscarsSoWhite” e “Black Lives Matter”, e da vigorosa campanha em favor da comunidade LGBTQA+ do século 21.
Como argumentei no posfácio à minha lista, a ingênua mas valiosa intenção de produzir uma lista de “melhores filmes” da história do cinema tinha um caráter didático e pioneiro em 1952, quando o cinema e seu estudo contavam com pouco mais de meio século, mas cumpre papel bastante distinto hoje, quando o cinema avança na terceira década de seu segundo século, numa conjuntura radicalmente alterada pela revolução digital quanto à produção, distribuição, exibição, fruição e análise.
A consagração de “Jeanne Dielman”, certamente o mais desconhecido dos títulos a liderar historicamente a lista, assinala também um “Zeitgeist” estético de fortalecimento do chamado “slow cinema” no século 21, liderado por cineastas tão distintos quanto a própria Akerman e o húngaro Béla Tarr (Satántango), o tailandês Apichatpong Weerasethakul (Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas) e o documentarista brasileiro Cao Guimarães (Alma do Osso). Lembremos: em 1952, a votação era liderada por “Ladrões de Bicicletas” (1952), de Vittorio De Sica, no auge da influência internacional da escola já então em descenso nacional do “neorrealismo italiano”. E assim sucessivamente.
Lançado nos EUA em plena Segunda Guerra (1939-1945), “Cidadão Kane” (1941) de Orson Welles sequer constava dos dez mais votados da primeira lista, certamente pelo atraso em sua recepção européia -e quase exclusivamente europeus eram os votantes de primeira hora. Apenas no levantamento de 1962 “Kane” alcançaria o topo, mantendo-se no posto até ser desbancado em 2012 por “Um Corpo Que Cai” (1958), de Alfred Hitchcock.
A obra-prima de Welles também liderou as duas primeiras votações específicas de cineastas, realizadas em 1992 e 2002, cedendo o posto para “Era Uma Vez em Tóquio” (1953), de Yasujiro Ozu. em 2012, passando para o terceiro lugar, e subindo uma posição no ranking deste ano, liderado pela primeira vez por “2001, Uma Odisséia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick (o terceiro mais votado entre os críticos). “Jeanne Dielman”, por sua vez, ascendeu também na votação de cineastas, passando da 107ª posição em 2012 para o quarto posto agora. Como afirma o texto introdutório da edição especial impressa da Sight and Sound com o novo levantamento, “comparada às maiores mudanças sísmicas da votação da crítica, a votação de diretores permaneceu estável; sete dos dez mais desta década lá estavam também em 2012”.
A edição especial, com a íntegra dos votos de cerca de um quarto dos 480 cineastas participantes, a qual tive acesso apenas após o fechamento da coluna anterior, é reveladora ainda sobre a evolução da valorização da produção documental. Um híbrido entre ficção e não-ficção, o metacinematográfico “Close-Up” (1989) do iraniano Abbas Kiarostami, conquistou a melhor posição (9ª); o documentário mais bem posicionado entre os críticos, no oitavo posto, “O Homem Com a Câmera” (1929), de Dziga Viértov, ficou somente na 30ª posição entre diretores e diretoras.
Mesmo nos votos de documentaristas é curioso constatar o raro destaque a filmes não-ficcionais. A lista do decano Frederick Wiseman (Titicut Follies) apresenta nada menos que seis comédias, sendo liderada por três com os irmãos Marx, “Uma Dia nas Corridas” (1937), “Uma Noite na Ópera” (1935) e “O Diabo a Quatro” (1933); o isolado documentário de sua lista é “Hotel Terminus” (1988), de Marcel Ophuls.
A série “Decálogo” (1989), do polonês Krzysztof Kieslowski, encabeça a votação de Laura Poitras (Cidadãoquatro), que contempla porém três documentários: “O Homem Com A Câmera”, “Caixeiro-Viajante” (1969), dos irmãos Mayles e Charlotte Zwerin; e “Dont Look Back” (1967), de D. A Pennebaker. Já o mestre chinês Wang Bing (A Oeste dos Trilhos) abre sua lista com “Cidadão Kane” e elege apenas duas não-ficções: “O Homem Com A Câmera” e “Shoah”.
A íntegra dos votos dos mais de 1600 críticos e curadores e novos recortes do levantamento serão publicados no próximo mês, on-line e no número de janeiro da Sight and Sound. Sim, há muito debate pela frente.