Por Amir Labaki
Quando você estiver lendo esta
coluna já terá terminado o mistério em torno da nova relação de dez
maiores filmes da história do cinema segundo o levantamento com críticos
e cineastas realizado a cada década, desde 1952, pela revista britânica
Sight and Sound, editada pelo British Film Institute (BFI). Escrevendo
ainda sob suspense, tendo encaminhado em agosto passado minha lista
atendendo ao gentil convite do editor Mike Williams, imagino se terá
sido ampliada a presença de documentários entre os títulos mais votados.
Na relação de 2012, ainda foi
tímido o reconhecimento ao cinema não-ficcional, apesar de seu
fortalecimento como fenômeno industrial já a partir da revolução digital
da última década do século 20; do ponto de vista estético, a força
inovadora do documentário se impusera desde ao menos os anos 1920, no
período final da era silenciosa. Ainda assim, apenas quatro obras
documentais foram eleitas entre os 100 maiores filmes dez anos atrás.
“O Homem Com A Câmera” (1929), de
Dziga Viértov (ou Vertov), conseguiu então o feito de conquistar a
oitava posição, ao combinar elementos da então vigorosa escola de
“sinfonias urbanas” (embora rodado em mais de uma cidade) e um radical
ensaio sobre a própria atividade cinematográfica. No 29º posto
situava-se “Shoah” (1985), a monumental e dilacerante radiografia do
Holocausto nazista dirigido pelo cineasta francês Claude Lanzmann
(1925-2018).
Presente na lista com três
produções ficcionais, “Acossado” (1960), “O Desprezo” (1963) e “O
Demônio da Onze Horas” (1945), respectivamente em 13º, 21º e 42º
lugares, o recém-falecido cineasta franco-suiço Jean-Luc Godard
(1930-2022) arrebatou ainda uma vaga na 48ª. posição para sua série
“Histoire(s) du Cinéma” (1988-1998), não um exercício histórico, mas sim
uma reflexão de quase quatro horas e meia, divididas em oito partes, a
um só tempo poética e política, filosófica e autobiográfica, sobre a
arte cinematográfica. (A tradução integral de seu denso texto, por
Zéfère, foi lançada neste ano dentro da coleção Círculo de Poemas da
Fósforo Editora).
Por fim, também distinguido com a
escolha em 50º lugar de seu curta experimental de ficção científica “A
Pista” (1962), o francês Chris Marker (1921-2012) conquistou também a
69ª posição para seu “Sem Sol” (1982), um ensaio experimental sobre
tempo e memória, entre o “home movie” e o “filme de viagem”, a partir de
registros rodados por ele mesmo e outros cinegrafistas, tudo
sedimentado numa estrutura epistolar ficcional. Não se tratou de mera
coincidência que, num levantamento entre profissionais e especialistas,
três dos quatro documentários entre os cem maiores filmes girassem em
torno da própria prática cinematográfica.
A ficha caiu em 2014 e, “à luz dos
incríveis sucesso recente e impacto cultural de vários filmes
não-ficcionais”, a Sight and Sound realizou sua primeira pesquisa
exclusiva visando a mapear “o cânone do documentário”. O topo da lista
não trouxe surpresas ao repetir três das obras não-ficcionais destacadas
pelo levantamento anterior, com “O Homem com a Câmera” no primeiro
posto, “Shoah” no segundo e “Sem Sol” no terceiro. O episódio inaugural
de “Histoire(s) du Cinéma’, intitulado “Todas as Histórias”, apareceu,
contudo, apenas no 28º posto na votação entre cerca de 350 críticos,
curadores e documentaristas.
A diversidade estilística da
produção documental é bem espelhada pelos dez mais da lista. Sucedem-se,
a partir do quarto posto, o documentário curto de Alain Resnais sobre o
Holocausto, “Noite e Neblina” (1956); a influente investigação criminal
de Errol Morris em “A Tênue Linha da Morte” (1988); o pioneiro “Nanook,
O Esquimó” (1922), de Robert Flaherty; a pesquisa antropológica urbana
de “Crônica de um Verão” (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin; a inédita
proximidade com os personagens da escola do Cinema Direto de “Dont Look
Back” (1967), de D. A. Pennebaker (8º), e de “Grey Gardens” (1971), dos
irmãos Maysles, Ellen Hovde e Muffye Meyer (10º ); e o
metacinematográfico “Os Catadores E Eu” (2000), de Agnès Varda (9º).
Que a cultura do documentário se
robusteceu na última década me parece evidente e salutar. É hora de
interpretar como essa dinâmica foi captada pelo sismógrafo da Sight and
Sound.