Uma dupla efeméride celebra neste ano o processo que levou a CNN a classificar nesta semana a nossa como “a era de ouro do documentário”. O corrente Sundance Film Festival, que prossegue até a próxima terça-feira, comemorou em seu primeiro final de semana os 20 anos de lançamento, no próprio festival, de “Basquete Blues” (Hoop Dreams) de Steve James. Ao mesmo tempo, Michael Moore já anunciava pelo twitter seus preparativos para festejar no começo do segundo semestre os 25 anos de seu “Roger & Eu” (Roger & Me).
Marcadamente distintos, aproxima-os o fato de terem representado momentos de virada, sobretudo nos EUA, da produção de documentários rumo às salas de cinema – e não mais apenas à televisão ou às telas alternativas. Foram ambos marcos na busca de estratégias narrativas sedutoras para o grande público, afinal bem sucedidas alcançando bilheterias raras para o gênero.
“Roger & Eu” custou em 1989 aproximadamente US$ 150 mil e arrecadou quase US$ 7 milhões. “Basquete Blues” saiu em 1994 por cerca de US 600 mil e se aproximou de US$ 8 milhões. Não surpreende que se iniciava então uma expansão da presença em salas de longas documentais americanos, ainda que raramente com similar resultado financeiro.
Não por coincidência, foi fundamental para ambas histórias de sucesso o fato de os dois filmes terem sido abraçados pelo mais popular crítico de cinema então em atividade nos EUA, o finado Roger Ebert (1942-2013). Primeiro crítico de cinema americano a receber o Pulitzer por sua colaboração histórica com o Chicago Sun-Times, Ebert multiplicava sua influência ao comandar ao lado de Gene Siskel (1946-1999) a principal resenha cinematográfica semanal da TV americana, o “Siskel & Ebert At The Movies”. Como acontecera pouco antes com “A Tênue Linha da Morte” (The Thin Blue Line, 1988) de Errol Morris, as resenhas entusiásticas de Ebert a “Roger & Eu” e “Basquete Blues” foram essenciais para posicionar ambos títulos nos radares tanto do público quanto de distribuidores e exibidores dos EUA.
“O gênio de ‘Roger & Eu’”, escreveu Ebert em 1989, “é que ele entende a máquina de manipulação de imagem das relações públicas das corporações e a enfrenta com o mesmo cinismo e inteligência. A maravilha é que o filme é ao mesmo tempo tão furioso e tão engraçado”.
A corporação, no caso, é a fábrica de automóveis General Motors (GM), e o “Roger” do título, seu então CEO, Roger Smith. O documentário gira em torno das tentativas fracassadas de Michael Moore entrevistá-lo sobre o maciço desemprego causado em sua cidade natal, Flint, no Estado do Michigan, pela demissão de mais de 33 mil empregados da GM pelo fechamento de 7 de suas indústrias na cidade.
“Sou parcial”, reconheceu Moore na época. “O filme tem um ponto de vista, mas eu não distorci os fatos nem, como (o crítico da revista Film Comment) Harlan Jacobson diz, brinquei com a verdade para impor a minha visão política. Existe uma certa licença cômica que é preciso ser levada em conta no filme”.
“Roger & Me” estabeleceu Michael Moore na linha de frente de uma nova escola de documentários batizada pelo ensaísta Bill Nichols como “performática”. Presente tanto na narração quanto diante das câmeras, Moore se tornaria nas décadas seguintes a primeira estrela da indústria não-ficcional americana (Tiros em Columbine; Fahrenheit 11 de Setembro).
“Basquete Blues” pertence a outra galáxia. James dedicou cinco anos a acompanhar, principalmente com uma câmera eletrônica (Beta) e não cinematográfica, a luta pela ascensão no disputado mercado profissional de jogadores de basquete de dois jovens negros, William e Arthur, de comunidades carentes de Chicago.
Ebert encerrava sua resenha escrevendo: “Muitos espectadores de cinema relutam a assistir documentários, por razões que eu nunca entendi; os bons são frequentemente mais absorventes e divertidos do que a ficção. ‘Basquete Blue’, porém, não é apenas um documentário. É também poesia e prosa, denúncia e exposição, jornalismo e polêmica. É uma das maiores experiências cinematográficas de minha vida”.
Na entrevista que fiz com Steve James em junho de 1995, durante a primeira exibição nacional do filme num seminário no CCBB do Rio sobre o futuro do cinema, ele parecia prever o impacto duradouro que o registro em video (e posteriormente em digital) teria sobre a produção de documentários. “É um testemunho do desenvolvimento desta tecnologia”, me disse. “O video tornou possível começar um projeto de documentário com praticamente nenhum dinheiro. É muito mais portátil. (...) Ganhávamos assim mais momentos de intimidade com as pessoas”. E assim tem sido.
Desde então, Steve James desenvolve uma das mais consistentes carreiras dedicadas a documentários de temáticas sociais nos EUA, com marcos como a série “The New Americans” (2004) e “The Interrupters” (2011). No último final de semana, além de participar da comemoração dos 20 anos de “Basquete Blues” com uma cópia restaurada no Sundance, ele lançou em sessão especial no mesmo festival um comovente retrato da vida e da longa agonia de Roger Ebert, intitulado “Life Itself”. Um belo círculo se fechava.
Amir Labaki