Por Amir Labaki, de Cannes
A 75ª edição do Festival
Internacional de Cinema de Cannes se encerra neste sábado (28) com o
anúncio do vencedor da Palma de Ouro e dos demais prêmios, atribuídos
pelo júri presidido pelo ator francês Vincent Lindon (O Valor de Um
Homem; Titane). Faltando conhecer os últimos concorrentes, entre os
quais “Showing Up” da americana Kelly Richardt, já premiada na semana
passada pelo conjunto da obra com o Carrossel de Ouro da mostra paralela
Quinzena dos Realizadores, não há um favorito absoluto a cravar de uma
disputa apenas mediana.
Cannes 2022 buscou projetar uma
imagem de retomada à normalidade frente a uma pandemia em desaceleração,
com a recomendação para o uso de máscaras durante as sessões sendo
praticamente descartada pela quase totalidade do público. A queda
radical da frequência aos cinemas no mundo inteiro para os filmes de
autor que escoram o prestígio do festival foi tema recorrente na
cobertura local e internacional e nas conversas de mercado. Não à toa o
simpósio comemorativo da efeméride dos 75 anos, dividido em duas tardes,
reuniu realizadores internacionais em torno do tema “Filmmaking: What
Now?”, fazer cinema, o que agora?, com destaque para discussões em torno
da ascensão do consumo por meio das plataformas de streaming, acelerada
pelos dois anos pandêmicos.
Não surpreende, assim, ter ganhado
cores marcadamente nostálgicas a seleção de documentários sobre cinema
do ciclo paralelo Cannes Classics. “The Last Movie Stars” (As Últimas
Estrelas de Cinema), o título da série documental realizada para a CNN e
HBO Max pelo ator Ethan Hawke sobre o casal Joanne Woodward/Paul
Newman, capturou profeticamente o Zeitgeist reinante. Os dois episódios
exibidos em pré-estreia mundial, o terceiro, “The Legend of Paul Leonard
Newman” (A Lenda de Paul Leonard Newman), e o quarto, “Paying The
Price” (Pagando o Preço), enfocam o auge das carreiras de ambos, com a
explosão dele em “Desafio à Corrupção” (1961) e “O Indomado” (1963) e a
consolidação dela em “Rachel, Rachel” (1968), seguido por certo refluxo
em meados dos anos 1970. A produção durante a pandemia marca a série com
a ancoragem por Hawke de entrevistas feitas por ferramentas como Zoom.
Uma entrevista também à distância
com o pintor e cineasta americano Julian Schnabel também data a
realização pelo documentarista espanhol José Luís López-Linares de
“L’Ombre de Goya par Jean-Claude Carrière” (A Sombra de Goya por
Jean-Claude Carrière), mas a morte do protagonista em fevereiro de 2021
exigiu toda uma reengenharia dramática. Apenas uma das duas viagens de
Carrière à Espanha para acompanhar os passos de Goya pôde ser realizada.
López-Linares sabiamente introjetou a perda ao próprio filme,
tornando-o tanto um fascinante mergulho na vida e obra do pintor
espanhol quanto um retrato de despedida do roteirista de Luís Buñuel,
Milos Forman, Peter Brook e tantos outros.
Perspectivas feministas são o
traço comum de dois documentários realizados por diretoras francesas,
“Jane Campion, La Femme Cinéma” (Jane Campion, A Mulher Cinema), de
Julie Bertucelli, e “Romy Femme Libre” (Romy Mulher Livre), de Lucie
Cariés. Mais convencional, o segundo foi catalisado pela corrente
exposição dedicada pela Cinemateca Francesa à atriz franco-austríaca
Romy Schneider (1938-1982) no quadragésimo aniversário de seu precoce
desaparecimento.
É ainda impressionante, talvez
apenas com paralelo na guinada de Ingrid Bergman ao abandonar Hollywood
para abraçar o neorrealismo de Roberto Rossellini, a reorientação
radical da carreira de Romy, revelada pelos dois filmes imensamente
populares da série “Sissi” (1956 e 1957), para se transformar numa
versátil e arrojada atriz européia, intérprete de Welles (O Processo),
Visconti (Ludwig: A Paixão de Um Rei) e Zulawski (O Importante É Amar),
mas sobretudo do francês Claude Sautet (As Coisas da Vida; César e
Rosalie).
Para além de um retrato
biográfico da primeira diretora a receber a Palma de Ouro (O Piano,
1993), Bertucelli realizou um ensaio rigoroso sobre a obra
personalíssima de Jane Campion, de seu curta também premiado em Cannes,
“Peel” (1982), ao recente faroeste revisionista “Ataque Aos Cães”
(2021), que lhe valeu o Oscar de direção. Com o protagonismo feminino
sempre ao centro, “La Femme Cinéma” lança luzes sobre a rara
organicidade estilística de Campion numa obra de igualmente atípica
variedade de gêneros, de retratos contemporâneos de mulheres incomuns
(Um Anjo Sobre Minha Mesa; Fogo Sagrado!) a filmes de época (Retratos de
Uma Mulher; O Brilho de Uma Paixão) e policiais (Em Carne Viva; Top of
the Lake).
Prêmios à parte, Cannes deixa no
ar uma angustiante pergunta: para filmes como os de Carrière, Romy e
Campion haverá futuro na tela grande de nossos templos de salas escuras?