Por Amir Labaki
É com
contenção que o Festival Internacional de Cinema de Cannes celebra sua
corrente 75ª edição, aberta na última terça-feira e com encerramento no
sábado, dia 28. Mesmo com a cerimônia comemorativa marcada para a
próxima quarta (24), nem de longe se compara aos festejos do
quinquagésimo festival em 1997, como testemunhei em minha sexta
cobertura, então para a “Folha”, desde o batismo em 1991. Há exatos
vinte anos esta coluna debutava no “Valor”, ainda antes da criação deste
caderno, exatamente destacando desde a Croisette a ampliação do espaço
para documentários naquela 55ª edição do festival.
Para a celebração do
cinquentenário, o festival reuniu nada menos que 29 vencedores ainda
vivos, do francês Henri Colpi (Uma Tão Longa Ausência, Palma de Ouro de
1961) ao britânico Mike Leigh (Segredos e Mentiras, vencedor do ano
anterior), incluindo o brasileiro Anselmo Duarte de “O Pagador de
Promessas”, Palma de Ouro em 1963. Um júri formado por estes premiados
concedeu então a inédita Palma das Palmas ao sueco Ingmar Bergman
(1919-2007), que jamais vencera o festival em seis participações.
Bergman desculpou-se pela ausência através de sua filha Lynn Bergman,
pedindo perdão a “um homem velho por não estar aqui nesta noite”.
A rica bibliografia dedicada ao
Festival de Cannes encorpou como nunca naquele ano. A mais imponente foi
“Cannes Memories”, apresentado como o “Álbum Oficial do 50º
Aniversário”, um volume bilingue (francês e inglês) com inédita
organização de informações históricas sobre cada um dos festivais. Cada
edição era apresentada em quatro páginas, duas com o pôster, os
selecionados, jurados e premiados e duas com uma seleta de citações de
coberturas e de fotos. Jamais lançado no Brasil, o álbum ganharia
reedições em efemérides redondas posteriores, mas nenhuma tão luxuosa.
Simultaneamente chegou às
livrarias “Le Roman de Cannes – 50 Annés du Festival” (O Romance de
Cannes – 50 anos de Festival, TF1 Éditions, 1997, 268 págs), um livro de
mesa escrito pelos críticos de cinema Danièle Heymann e Jean-Pierre
Dufreigne que narra ano a ano a crônica do festival. Enriquecem-na
generosos registros fotográficos e testemunhos de participantes, ora
extraídos de artigos jornalísticos da época, ora encomendados com
exclusividade para estrelas e cineastas como Akira Kurosawa, Jeanne
Moreau, Martin Scorsese e Volker Schlondörff.
Estes breves textos originais
ajudam a reconstituir a memória afetiva daqueles que tornaram o evento
na Riviera francesa o mais importante encontro cinematográfico do
calendário anual. São documentos valiosos que se eclipsam um pouco
apenas frente às contribuições mais extensas e variadas reunidas por
encomenda de Gilles Jacob a 80 cineastas “familiares do festival”, do
britânico Alan Parker ao italiano Ermanno Olmi, passando pelo brasileiro
Carlos Diegues, para celebrar em 1992 a 45ª edição com o livro “Les
visiteurs de Cannes – cinéastes à l’oeuvre” (Os visitantes de Cannes –
cineastas em trabalho, Hatier, 302 págs). Textos memorialísticos
alternam-se aqui com diários de produções, trechos de roteiro, croquis e
fotos de bastidores de filmagens, numa caleidoscópica janela para os
processos criativos de alguns dos maiores cineastas da história.
Somente na década passada vieram à
luz visões privilegiada de dentro (e do topo) da realização do
festival. Selecionador, depois diretor artístico e finalmente presidente
do festival, o crítico Gilles Jacob publicou em 2009 suas memórias de
quase três décadas de essencial engajamento para consolidar Cannes como
evento incontornável. Publicado no Brasil pela Companhia das Letras
(2010, 392 págs), “Cidadão Cannes” alterna reminiscências
autobiográficas sobre sua formação de garoto privilegiado numa família
judaica sob a ocupação nazista da França, de 1940 a 1945, a
inconfidências sobre os bastidores das visitas de estrelas, debates de
jurados e seleções de filmes. No ano passado, Jacob consolidou de forma
mais didática seu conhecimento sobre a história do festival na
enciclopédia “Dictionaire Amoureux du Festival de Cannes” (Dicionário
amoroso do Festival de Cannes, Plon, 865 págs.).
Desde 2007 seu sucessor no cargo
de diretor artístico (“délégue general”, como o definem na França),
Thierry Frémaux ampliou a transparência do processo de seleção,
organização e realização do festival com a publicação em 2016 de
“Sélection Officiele – Journal, notes et voyages” (Seleção Oficial –
Diários, notas e viagens, Bernard Grasset, 618 págs, inédito aqui). No
livro, Frémaux apresenta seus registros pessoais da noite de premiação
do festival de 2015 ao encerramento da edição seguinte, num fascinante
mergulho em seu cotidiano e suas reflexões. Se para compreender como
Cannes se tornou Cannes é essencial ler Gilles Jacob, para entender como
funciona hoje a máquina do festival não há melhor guia do que Thierry
Frémaux.