Por Amir Labaki
Foi um documentário a primeira
produção brasileira a participar oficialmente da competição principal do
Festival de Cannes, que no próximo dia 17 inaugura sua 75ª edição. Não
aconteceu logo de saída, no festival inaugural de 1946, mas sim em 1949,
na terceira edição. O site do festival registra apenas seu título,
“Sertao”, sem o til (Sertão) e sem o subtítulo (Entre Os Índios do
Brasil Central), e erra o nome do diretor. O correto seria Genil
Vasconcelos, sendo creditado equivocamente “Joao G. Martin”, provável
referência ao um dos operadores de câmera, J. V. Martim.
Documentários de qualquer
nacionalidade raramente repetiram o feito de disputar o prêmio
principal, na época ainda não batizado como Palma de Ouro, criada em
1955. Apenas dois venceram Cannes: “O Mundo do Silêncio”, de Jacques
Cousteau e Louis Malle, em 1956, e“Fahrenheit 11 de Setembro”, de
Michael Moore, em 2004.
“Sertão: Entre Os Índios do
Brasil” não era o único documentário em competição em 1949.
Representando a Bélgica, participava da disputa também “Images
d’Éthiope” (Imagens da Etiópia), dirigido pelos franceses Jean
Pichonnier e Paul Pichonnier. O site do festival também se equivoca na
ficha técnica, creditando apenas Paul como diretor e Jean como
roteirista e dialoguista. Apenas um documentário os precedera em
competições oficiais: o ensaio de arquivo “Paris 1900”, da francesa
Nicole Védrès, selecionado para a segunda edição, em 1947. (Por
dificuldades orçamentárias, não houve festival em Cannes em 1948).
O filme de Genil Vasconcelos se
insere entre os pioneiros longas-metragens etnográficos da era sonora no
Brasil. A sinopse no banco de dados da Cinemateca Brasileira
(felizmente de volta on-line, com a nova administração) o apresenta como
“expedição ao território dos Xavantes da Região Centro-Oeste, que
registra seu primeiro contato com os não-índios”, tendo texto da locução
escrito por Osvaldo Alves e Raimundo Magalhães Jr. e lido pelo célebre
locutor radiofônico Luís Jatobá.
Não foram diretamente as
celebrações previstas para a efeméride da 75ª edição que me levaram a
mergulhar na história de Cannes e encontrar o pioneiro “Sertão”, mas sim
um curioso romance policial francês situado durante o festival de 1949,
“L’Assassinat d’Orson Welles” (O assassinato de Orson Welles, Éditions
du Rocher, 304 págs, 18,90 euros, 2019, inédito no Brasil). Escrito pelo
ex-jornalista (Paris Match, L’Express) Jean-Pierre de Lucovich, o livro
retoma no imediato pós-guerra as aventuras do detetive particular
Jérôme Dracéna, lançado no premiado “Occupe-Toi d’Arletty!” (Plon, 2011,
também inédito aqui).
Cannes é o epicentro da ação, mas
ocupa um pouco menos de um terço da narrativa, abrindo e fechando o
livro. Tudo começa quando um tiro atinge o espelho logo atrás de Welles
em sua suíte no Hotel Carlton, num fim de tardede 14 de setembro de
1949, três dias antes do encerramento do festival. Welles lá estava com a
equipe de “O Terceiro Homem”, o filme noir britânico que venceria
aquela edição, dirigido por Carol Reed a partir de um roteiro original
de ninguém menos que Graham Greene.
Mais para um personagem de Jean
Dujardin (O Artista) do que para um “flic” de Lino Ventura (Os
Sicilianos), o parisiense Dracéna debuta na Croisette escoltando Welles
depois uma série de ameaças anônimas. Antes de conhecer as sessões de
gala no velho Palácio e as festas noite adentro, passa por uma espécie
de supletivo dos bastidores do cinema em Paris, entre personagens
fictícios e estrelas reais como Pierre Brasseur, Daniel Gélin e Simone
Signoret.
A escrita de Lucovich é mais forte
na composição de atmosferas do que na invenção do entrecho. Sua
pesquisa reconstitui bem a então nova feira das vaidades da aurora de
Cannes, com foco sobretudo longe das telas, embora por lá exibissem
belos filmes como “Ato de Violência”, de Fred Zinnemann, “Sangue do Meu
Sangue”, de Joseph L. Mankiewicz, e “Arroz Amargo”, de Giuseppe De
Santis. Não, sem surpresas, o romance não faz qualquer referência a
“Sertão”, mas cita de passagem a jornada wellesiana no país em 1942.
O Welles de Lucovich é um pícaro
infatigável, em constante ciranda amorosa e frenesi criativo -à época
tentando completar o orçamento para terminar seu “Othello”, que
-fechando um círculo- seria um dos vencedores de Cannes em 1952. Charuto
sempre aceso, de apetite pantagruélico, parece mais uma anteprojeção do
Welles tardio do que um retrato do recém autoexilado na Europa. “Escape
artist” assumido, ele parece divertir-se postumamente eludindo mesmo os
que como personagem o celebram.