Por Amir Labaki
A pouco menos de um mês da
abertura, em 17 de maio, de sua 75ª edição, o Festival de Cannes já
provoca polêmica, algo abafada pela tensão política da revanche
eleitoral que opõe, no segundo turno da eleição presidencial deste
domingo, o atual presidente Emmanuel Macron e a líder de extrema-direita
Marine Le Penn, a mesma dupla de finalistas do pleito anterior em 2017.
A principal discussão não gira, contudo, em torno da seleção oficial de
filmes anunciada no último dia 14, resumida abaixo.
O foco da discórdia foi a eleição,
há um mês, da advogada alemã Iris Knobloch para suceder na presidência
do festival a Pierre Lescure, a partir de 1º julho. Não se trata de um
debate chauvinista sobre a chegada de uma mulher finalmente ao topo do
principal evento cinematográfico mundial -antes tarde do que nunca.
Tampouco, dentro do espírito de convivialidade europeia, parece se
discutir sua nacionalidade, como a primeira liderança não-francesa
alçada ao posto.
O centro da discussão foi o
encaminhamento pouco transparente e democrático, ao Conselho de
Administração do Festival, da indicação de Knobloch ao cargo pelo
ministério da Cultura do governo Macron. Segundo o diário francês Le
Monde, sete das principais associações de profissionais de cinema e
audiovisual com assento no conselho, incluindo os representantes dos
diretores, produtores e distribuidores, se opuseram à opacidade do
processo de nomeação. Resultado: a primeira eleição sem unanimidade, com
Knobloch recebendo 18 votos favoráveis, seis contrários, três em branco
e uma abstenção.
Com formação em direito na
Alemanha e nos EUA, Iris Knobloch tem em seu currículo 25 anos de
trabalho como executiva da WarnerMedia, quinze deles como CEO da Warner
Bros França. Depois de um breve interregno comandando o grupo na França,
Benelux, Alemanha, Áustria e Suiça, Knobloch se desligou no ano passado
para formar, ao lado do banqueiro francês Mathieu Pigasse e do grupo
Artemis do empresário François Pinault, a I2PO, uma companhia de
investimentos e aquisições na indústria do entretenimento. Num acordo
para sua indicação, a nova companhia se comprometeu a cessar os
investimentos audiovisuais e cinematográficos durante seu mandato.
Afinal uma mulher de negócios,
saúdam uns, pilheriam outros. Knobloch representa de fato o primeiro
executivo de audiovisual e cinema a ocupar o posto. Após a presidência
honorária atribuída pontualmente ao inventor do cinema, Louis Lumière,
na edição inaugural de Cannes em 1949, o posto máximo da administração
do festival foi efetivamente estabelecido apenas em 1972, com a
indicação de um de seus fundadores, o jornalista Robert Favre Le Bret,
sucedido em 1984 pelo gestor cultural público Pierre Viot. O crítico de
cinema de origem Gilles Jacob, responsável pela modernização e
consolidação de Cannes como ápice da agenda mundial durante seu mandato
como diretor-geral (1978-2001), substituiu Viot no início deste século,
passando a coordenação artística ao atual titular, Thierry Frémaux. Em
2014, Jacob aposentou-se, passando a presidência, para o primeiro dos
dois mandatos de três anos agora findos, ao jornalista e executivo do
setor audiovisual Pierre Lescure.
No comunicado oficial distribuído
pelo Festival de Cannes, Iris Knobloch definiu o evento como “encontro
maior para a defesa da vida cultural de um mundo que comprova, como
nunca, sua imperiosidade necessidade”. Diante do braço de ferro ainda em
curso entre Cannes e as plataformas de streaming, dada a exigência do
festival do lançamento em salas com ampla janela de exclusividade de
todos os filmes selecionados, Knobloch foi astuta ao afirmar ainda: “o
filme de cinema em sala permanece uma expressão artística essencial”.
Astuta, mas com margem de manobra, registre-se.
A ausência de produções sobretudo
da Netflix, assim como de plataformas homólogas, marcou a seleção já
anunciada por Frémaux. “Os suspeitos de sempre”, brincam os colegas, com
o retorno à disputa da Palma de Ouro de veteranos da Croisette. Quatro
já venceram o festival: os irmãos belgas Jean-Pierre & Luc Dardenne
(Tori e Lokita), o japonês Hirokazu Koreeda (Broker), o romeno Cristian
Mungiu (RMN) e o sueco Ruben Ostlund (Triangle of Sadness).
Pode ter chegado a hora da Palma
para recorrentes candidatos como o canadense David Cronenberg (Crimes
of the Future), a francesa Claire Denis (Stars at Noon), os americanos
James Gray (Armageddon Time) e Kelly Reichardt (Showing Up) ou o
sul-coreano Park Chan-Wook (Decision to Leave). Nenhuma produção
brasileira ou latino-americana participa da disputa principal -tampouco
qualquer documentário ou animação.
Fora de concurso, a festa no
tapete vermelho está garantida por Tom Cruise e “Top Gun: Maverick”, de
Joseph Kosinski, e a cinebiografia “Elvis”, de Baz Luhrmann. Tudo começa
em 17 de maio com a comédia francesa “Z (Comme Z)”, de Michel
Hazanavicius (O Artista), refilmagem do sucesso japonês “Plano-Sequência
dos Mortos” (2017). Cannes não seria Cannes sem uma abertura polêmica.