Por Amir Labaki
Em “The Beatles: Get Back”, a
série de oito horas em três episódios lançada na semana passada na
Disney +, Peter Jackson faz a autópsia das gravações que resultaram em
“Let It Be” (1970), o álbum e documentário de despedida do quarteto
britânico. O ponto de partida são mais de 60 horas de imagens filmadas e
150 horas de registros sonoros da interação do grupo, entre 2 e 31 de
janeiro de 1969, em duas locações distintas em Londres.
O arquipremiado diretor
neozelandês da série “O Senhor dos Anéis” (2001-2003) repete o mergulho
em arquivos de seu documentário anterior, “Eles Não Envelhecerão” (2018,
disponível no Globoplay), sobre as memórias dos veteranos da Primeira
Guerra Mundial (1914-1918). É distinta, contudo, a maneira com que
trabalha a partir daqueles materiais brutos.
Em “Eles Não Envelhecerão”,
Jackson restaurou imagens fílmicas e fotográficas do primeiro conflito
mundial, as reenquadrando e colorizando e estruturando sua narrativa a
partir de depoimentos dos raros soldados sobreviventes. “Get Back”, por
sua vez, renuncia ao uso de entrevistas e se constrói pela reedição dos
arquivos de imagem e som, cimentados por breves letreiros informativos.
Compreende-se que Jackson tenha
evitado repisar veredas já trilhadas. Aquele mítico mês que resultou em
“Let It Be”, o último álbum por eles lançado, mas o penúltimo
efetivamente gravado (“Abbey Road” furou a fila mesmo tendo sido
registrado alguns meses depois), já fora anteriormente dissecado por
duas produções oficiais da Apple: o documentário homônimo, rodado pelo
jovem cineasta Michael Lindsay-Hogg e há muito retirado de circulação, e
o oitavo e último episódio da telessérie “The Beatles Anthology”
(1995-1996), co-dirigido por Bob Smeaton e Geoff Wontor.
O filme de Lindsay-Hogg já
apresentara uma versão, ainda que extremamente condensada, do processo
de ensaio e de gravação do álbum. O capítulo final de “Anthology”, por
seu turno, revisitava o período contando com depoimentos exclusivos dos
três Beatles ainda sobreviventes no momento de sua produção, George
Harrison (1943-2001), Paul McCartney e Ringo Starr, tendo sido John
Lennon (1940-1980) tragicamente assassinado em Nova York quinze anos
antes.
A rivalidade era crescente, Yoko
Ono colara em John mesmo durante cada ensaio e gravação, havia uma crise
de gestão e de finanças, mas a experiência ainda não se esgotara. Um
trecho do depoimento de Ringo a “Anthology” serve de chave para a ideia
central Peter Jackson em “Get Back”. “Em muitos dias”, relembra o
bateirista, “apesar de toda a loucura, a coisa ainda funcionava”.
O cotidiano desta dinâmica volta à
tona pelo minucioso reexame das filmagens do dia a dia da interação do
quarteto. Há por Jackson uma fidelidade radical, quase absoluta, ao
colossal material bruto quase totalmente inédito. Apenas pontualmente
ele recorre à inserção de registros de outra origem, para esclarecer ou
ilustrar um episódio comentado por algum dos Beatles, seja um show
antigo ou a viagem à Índia em fevereiro de 1968.
A divisão em três episódios, com
cerca de duas horas e meia de duração cada, nasce da própria marcha dos
acontecimentos. O capítulo de abertura reconstitui os primeiros sete
dias de ensaios num grande estúdio de cinema em Twickenham, no sudoeste
de Londres, possível cenário para um show de TV ao vivo como grande
fecho da preparação do novo álbum. À tensão prévia acumulada somam-se
duas: a de criar e ensaiar em apenas duas semanas as quatorze canções
inéditas previstas, da qual existem apenas algumas em fragmentos, e a de
fazê-lo pela primeira vez sob o constante registro do som e imagem de
todo o processo.
Cobrindo de 13 a 25 de janeiro, o
segundo episódio inicia-se ainda em Twickenham, em plena interrupção
pela abrupta partida, anunciada como definitiva, de George Harrison, e
se desenvolve no novo local estabelecido pelo grupo reconciliado para a
continuidade dos trabalhos, o estúdio de gravação da Apple, ainda em
montagem em Seville Row, também em Londres. A convite de George, reforça
a gravação o pianista de “soul” Billy Preston (1946-2006), cuja
presença bem-humorada também funciona como veludo entre os cristais.
O que parece ser a íntegra filmada
dos quase quarenta minutos da apresentação final dos Beatles, na tarde
de 30 de janeiro no terraço do próprio prédio da Apple no centro
londrino, fornece o natural “grand finale” para o terceiro e último
episódio de “Get Back”. Pouco antes, é incrível testemunhar como ainda
na véspera do show Paul e George expressavam dúvidas sobre sua
realização.
Editando em telas múltiplas o
material captado pelas dez câmeras posicionadas por Lindsay-Hogg,
Jackson capta a mágica do momento, entre a tensão da performance, seu
evidente sucesso (três faixas saíram diretamente para o álbum), a
surpresa do público nas ruas de Londres e a incompreensão policial, que
encerra tudo por “perturbação da paz”. “Get Back” só é maior nos
momentos epifânicos em que se flagra a criação em processo.
Como em “O Mistério Picasso”
(1956) de Henri-Georges Clouzot, testemunhamos graças à câmera a
lapidação de nada menos que “Get Back”, “I Me Mine”, “Let It Be” e “The
Long and Winding Road”, entre outras canções de nossas vidas. Sim, eles
voltaram -sem nunca terem partido.