Por Amir Labaki
A 45ª edição da Mostra
Internacional de Cinema em São Paulo, que começa com sessões especiais
na próxima quarta (20) e segue até 3 de novembro, testará se o público
de cinema afora o de “blockbusters” está confiante para o retorno às
salas de exibição diante do presente abrandamento da pandemia de
covid-19 no país. A seleção vai apresentar 264 títulos em projeções
públicas, respeitados cuidados sanitários como a vacinação dos
espectadores e auditórios com apenas metade da capacidade total. Num
formato híbrido, parte da programação também será exibida em streaming.
A adaptação às novas rotinas de
uma semi-normalidade, ainda sob essencial monitoramento, busca seguir os
passos dos principais festivais deste segundo semestre, como Cannes
(França), Veneza (Itália), Telluride e Nova York (EUA). Nenhum destes
abrangeu, contudo, um circuito tão amplo de salas espalhadas pelo tecido
metropolitano como os 15 espaços programado pelo mais tradicional
evento cinematográfico paulistano. Diante do impacto devastador da
pandemia sob o mercado exibidor, sejam as grandes redes comerciais como
sobretudo sobre as salas de cinema de arte, reconheça-se o gesto
solidário visando catalisar um retorno de público tão urgente quanto até
o momento lento.
Duas produções, uma internacional,
outra brasileira, se distinguem na abordagem da própria pandemia.
Vencedor do Urso de Ouro da Berlinale 2021, “Má Sorte no Sexo ou Pornô
Amador”, do romeno Radu Jude, é um ousado filme híbrido, intercalando um
ensaio documental contra o autoritarismo numa narrativa, datada pela
presença de máscaras e preocupações com distanciamento social, que gira
em torno de um escândalo de vazamento on-line de um vídeo íntimo. Há
algo do cinema agudo do iugoslavo Dusan Makavejev (1932-2019), de “W.R. –
Mistérios do Organismo” (1971) e “Montenegro” (1981), apresentado
pioneiramente aos espectadores brasileiros nas primeiras mostras.
Já o documentário “Sars-Cov-2: O
Tempo da Pandemia”, de Eduardo Escorel e Lauro Escorel, radiografa em
cerca de uma hora e meia as trágicas consequência do coronavírus no
Brasil e a principal iniciativa benemérita de combate à pandemia, a
Todos pela Saúde, criada por uma doação de 1 bilhão de reais do
Itaú-Unibanco e coordenada pelo médico Paulo Chapchap. A convite da
Fundação Itaú para a Educação e Cultura e do Todos pela Saúde, os
diretores reconstituem os diversos vetores de atuação emergencial do
projeto.
“Em maio deste ano”, nos contou
com exclusividade Eduardo, “Lauro e eu tivemos o privilégio de conversar
com seis dos sete integrantes do comitê gestor do Todos pela Saúde, em
São Paulo. O sétimo, relutante em viajar naquele momento, foi gravado
depois, em Belo Horizonte, Helvécio Ratton atuando como entrevistador.
Essas gravações constituem o cerne do documentário ‘SARS-Cov-2: O Tempo
da Pandemia’. Colhemos a reflexão dos médicos e cientistas sobre a
experiência imprevista para eles de dispor, com autonomia total, de
recursos suficientes para salvar vidas, sem nunca pretender substituir a
ação do Estado”.
É encorpada e diversa a seleção
não-ficcional desta 45ª Mostra. Destaca-se de pronto a presença de
produções não-ficcionais em torno do universo artístico. Entre os
documentários brasileiros, dois deles, dirigidos por Fabrizia Pinto e
Guga Dannneman, celebram a obra do cartunista e escritor Ziraldo, autor
da mais bela arte estampada pelos cartazes da Mostra em muito tempo.
Ganham retratos ainda a atriz Leila Diniz (1945-1972), em “Já Que
Ninguém Me Tira Para Dançar”, de Ana Maria Magalhães, e o cineasta,
compositor e dramaturgo Ruy Guerra, no ano de 90º. aniversário,
comemorado por “Tempo Ruy”, de Adilson Mendes.
Dos filmes internacionais sobre
arte e artistas, a grande sacada é o retrato em paralelo de dois amigos
escritores americanos, “Truman & Tennessee”, sim, Capote &
Williams, dirigido por Lisa Immordino Vreeland. Um dos prováveis
concorrentes ao Oscar deste ano, “Summer of Soul (Ou Quando a Revolução
Não Pode Ser Televisionada)”, de Ahmir Questlove Thompson, terá
pré-estreia em projeção especial no Vão do Masp.
O cardápio documental apresenta
ainda dois dos principais lançamentos do Festival de Cannes: o
autobiográfico “Marx Pode Esperar”, de Marco Bellocchio, e o já aqui
destacado “Marinheiro das Montanhas”, do brasileiro Karim Aïnouz.
Dialoga com o filme de Aïnouz na delicadeza da abordagem das questões de
rupturas familiares “Radiografia de uma Família”, da iraniana Firouzeh
Khosrovani, vencedor do Festival de Documentários de Amsterdã (IDFA) do
ano passado. Nem a mais cruel pandemia derrotou o cinema.