Por Amir Labaki
Lançado entre as Sessões Especiais do
recém-encerrado 74o. Festival de Cannes, “O Marinheiro das Montanhas” de
Karim Aïnouz é um personalíssimo e sofisticado documentário de busca,
para usar a fórmula cunhada por Jean-Claude Bernardet há quase duas
décadas para analisar “Passaporte Húngaro” (2001), de Sandra Kogut, e
“33” (2002), de Kiko Goifman. Em 2019, Aïnouz viajou pela primeira vez à
Argélia para conhecer o país de origem de seu pai, o engenheiro Majid, a
quem conheceu apenas aos 18 anos. Sua mãe, a bióloga marinha Iracema,
criou-o sozinha em Fortaleza, apoiada pela mãe dela, depois de uma
história de amor vivida durante uma viagem de estudos aos EUA, na
primeira metade dos anos 1960.
Grávida, Iracema retornou ao Brasil,
enquanto Majid voltava a Argel, com a promessa de vir buscá-la. O
reencontro nunca aconteceu. Na Argélia recém-independente, ele se casou
de novo, teve uma filha e seguiu carreira, entre a capital argelina e a
ex-capital colonial francesa, Paris. Ainda vivo, Majid se ofereceu sem
sucesso para acompanhar Aïnouz à jornada iniciática por suas raízes
norte-africanas. É como uma longa carta para Iracema, morta em 2015, que
o cineasta narra sua viagem.
“O Marinheiro das Montanhas” combina
estilisticamente dois filmes anteriores de Aïnouz: o curta
autobiográfico “Seams” (1993), sobre sua avó e as quatro irmãs com que
passou a infância, e o híbrido “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te
Amo” (2009), co-dirigido por Marcelo Gomes, um “road-movie” pelo sertão
nordestino narrado em primeira pessoa pelo viajante solitário. Agora é
na própria voz de Aïnouz que minuciosamente acompanhamos a peregrinação:
viagem de navio de Marselha a Argel; descoberta da capital e expedição
até o vilarejo montanhoso de Tagmut Azuz, sede ancestral do núcleo
familiar paterno; volta a Argel para o rápido retorno marítimo.
Suas andanças são apresentadas pela
sucessão de planos breves com câmera parada, enquanto a narração tudo
sobrevoa, comentando o que se vê, sintetizando os eventuais diálogos,
abrindo parênteses para reflexões e arquivos pessoais assim como para
informações históricas sobre a Argélia e registros deste passado. Como
livro de cabeceira, o cineasta compulsa certeiramente durante a viagem o
ensaio anticolonialista “Os Deserdados da Terra”, de Frantz Fanon
(1925-1961), tendo cumprido papel central no destino paterno a sangrenta
batalha pela independência argelina.
As intervenções de imagens de distintas
texturas, novas ou de arquivo, adicionam como que uma pátina onírica à
documentação da viagem. Encontros com desconhecidos e com os familiares
de Tagmut Azuz catalisam reflexões sobre o passado e o presente
argelinos e estimulam projeções alternativas sobre o que poderia ter
sido a vida do cineasta caso tivessem seus pais se reencontrado, mudado
juntos para a Argélia e ele crescido lá. Para início de conversa, as
montanhas teriam sido seu mar.
Se o encontro com um tio-avô o conduz à
casa onde nasceram seu avô e seu pai e ao cemitério quase monopolizado
por jazigos de Aïnouzes, é o conhecimento da prima Ines que expande “O
Marinheiro das Montanhas” para além da pesquisa familiar. Aïnouz
incorpora ao filme dois breves curtas ficcionais, encenando o primeiro
um mito argelino da origem da vida e o segundo uma fábula futurista
protagonizada por Ines. A integração harmônica na narrativa desses
escapes não-documentais testemunha a maturidade fílmica atingida por
ele.
Numa era infestada de estridente
estupidez nas trilhas musicais para documentários, merece distinção o
trabalho de Benedikt Schiefer para dotar o filme de uma tapeçaria
musical que acentua sua dimensão de diário fantasmagórico. É de rara
felicidade o amálgama entre suas composições e as citações
dramaticamente certeiras de Bidu Sayão e Audrey Hepburn a Orlando Silva e
Bronski Beat.
Comecei relacionando “O Marinheiro das
Montanhas” aos marcantes filmes de Kogut e Goifman do início deste
século, mas me parece haver um diálogo ainda mais intenso com uma
variação mais recente de documentário de busca: “Fico Te Devendo Uma
Carta Sobre o Brasil” (2019), de Carol Benjamim. Coproduzidos ambos pela
Videofilmes, rimam na narração epistolar em primeira pessoa, na força
do núcleo familiar feminino (a mãe Iracema, a avó Iramaya), na pesquisa
por terras e línguas estrangeiras, na escavação do passado paterno. Em
termos de carreira, o filme de Carol tem o frescor das obras de partida,
enquanto o de Karim exibe sem ostentação a solidez das obras de
chegada.