Por Amir Labaki
O anúncio da seleção oficial do 74º.
Festival de Cannes, na manhã do último dia 3, combinava esperança e
precaução. Confirmou-se o evento para o período entre 6 e 17 de julho,
dada a atual retração da pandemia no território francês que permitiu uma
reabertura também de atividades culturais. Cancelado no ano passado,
restringindo-se à divulgação de uma lista de selecionados e à
organização bem-sucedida de um mercado de filmes on-line, o principal
festival de cinema do mundo se relança agora com um programa com as
dimensões regulares, mas ainda sob cuidados especiais frente ao desafio
sanitário ainda presente.
O contraste epidemiológico entre junho
de 2020 e este mês era evidente pelos protocolos marcadamente distintos
entre o evento do último ano e a coletiva da semana passada. No ano
passado, o presidente do festival, Pierre Lescure, e o delegado-geral,
Thierry Frémaux, tiveram apenas a companhia de meia dúzia de técnicos
durante toda a transmissão desde a sala de cinema UGC Normandie de
Paris. As poltronas distanciadas no palco de então foram, desta vez,
substituídas pela tradicional formação lado a lado numa mesa, ainda que
separados Lescure e Frémaux por uma proteção transparente. A sala antes
vazia voltava a reunir representantes da imprensa, portando máscaras e
respeitando o distanciamento social.
No terço final do encontro, coube a
Lescure complementar as informações sobre os cuidados sanitários já
parcialmente adiantados por um comunicado de imprensa no dia anterior. À
exigência de comprovações prévias de vacinação completa ou testes
negativos de todos os participantes, somou-se o anúncio da necessidade
da realização de testes de covid-19 de todos os credenciados a cada 48
horas. Mais e novas filas à vista, pois.
A cinco semanas da abertura do festival,
com o musical “Annette”, o primeiro filme americano do cineasta francês
Leos Carax (Os Amantes de Pont-Neuf), Lescure reconheceu ainda
importantes indefinições sobre o acesso ao festival a profissionais
oriundos da chamada zona vermelha da pandemia, Brasil incluído, assim
como de imunizados pelas vacinas chinesas e pela Sputnik-V russa.
Visando ampliar o número de sessões e
assentos disponíveis, projeções oficiais acontecerão também fora do
Palácio do Festival, num novo multiplex, o Cineum, a ser inaugurado em
Cannes para o evento. Um calendário mais intenso de projeções ao ar
livre, na praia de Cannes, será ainda anunciado.
A incerteza não afetará, felizmente, a
participação em Cannes do único diretor brasileiro presente na seleção
oficial, Karim Aïnouz, morador de Berlim. Depois de vencer em 2019 a
mostra Un Certain Regard com “A Vida Invisível”, Karim volta ao festival
para exibir entre as Projeções Especiais o documentário “O Marinheiro
das Montanhas”, sobre suas raízes familiares argelinas. No novo ciclo
Cannes Premières, o destaque não-ficcional é o reexame por Oliver Stone
do assassinato em 1963 do presidente americano John Fitzgerald Kennedy
com “JFK Revisited: Through The Looking Glass” (JFK Revisitado: Através
do Espelho).
Além de Cannes Premières, Frémaux
anunciou um retorno da mostra Un Certain Regard “às suas origens”, como
concebida por seu antecessor Gilles Jacob, focando em “filmes de novos
cineastas e produções experimentais”. Um ciclo especial sobre as
mudanças climáticas, com títulos ainda a ser revelados, completa as
principais novidades desta 74ª edição. Ainda não será desta vez que a
Netflix voltará a apresentar produções na Croisette, dado o conflito a
partir da exigência de que filmes em competição sejam exibidos
prioritariamente nas salas francesas.
O júri presidido por Spike Lee assistirá
a um total de 24 filmes para atribuir a Palma de Ouro 2021. Sete são
dirigidos por diretores franceses, entre os quais Jacques Audiard (Les
Olympiades), Bruno Dumont (France) e François Ozon (Tout S’Est Bien
Passé). A segunda maior representação é de cineastas americanos, com os
novos filmes de Wes Anderson (A Crônica Francesa), Sean Baker (Red
Rocket) e Sean Penn (Flag Day). Nenhuma produção latino-americana
participará da disputa.
Além de Audiard, dois outros vitoriosos
em Cannes voltam a participar da competição: o italiano Nanni Moretti
(Tre Plani) e o tailandês Apichatpong Weerasethakul (Memoria). Apenas
quatro das concorrentes são mulheres, três das quais em produções
francesas: Julia Ducournau (Titane), Mia Hansen-Love (Bergman’s Island) e
Catherine Orsini (La Fracture), ao lado da húngara Ildikó Enyedi (A
História de Minha Mulher).
Segundo Frémaux, a pandemia pautou uma
pequena proporção dos mais de 2 mil títulos inscritos. “La Fracture”,
combinando atores profissionais e intérpretes amadores, se destaca como o
único selecionado em competição. Um filme internacional de sete
episódios participa das Projeções Especiais, “O Ano da Tempestade
Duradoura”, realizado entre outros pela americana Laura Poitras, pela
chilena Dominga Sottomayor, pelo iraniano Jafar Panahi e pelo também
concorrente Weerasethakul. Tomara reflitam um traumático passado em vias
de superação. Cannes, bon courage.