Por Amir Labaki
Caetano.doc
é o ciclo especial on-line de nove documentários brasileiros que traça,
no corrente É Tudo Verdade 2021, um panorama da vida e obra do cantor e
compositor baiano. Trata-se de um modesto sobrevoo: da consagração
primeira nos festivais à explosão tropicalista, do trauma do exílio à
reconexão nacional e à veneração planetária. A mostra não foi catalisada
por qualquer efeméride; seu único gatilho foi pura gratidão.
Gratidão
imediata -não apenas histórica. Caetano Veloso é uma das personalidades
culturais centrais do Brasil desde a eclosão do movimento tropicalista
em fins dos anos 1960. Sua influência desde o princípio transcendeu a
esfera eminentemente musical -foco maior de sua atuação. Caetano se
posiciona, neste mais de meio século, na linha de frente da batalha por
um país mais democrático, inclusivo e justo e por uma sociedade menos
hipócrita diante da diversidade étnica e sexual. É um pensador do
Brasil, bastando ler sua elegante autobiografia, “Verdade Tropical”
(Companhia das Letras), para compreender a erudição de seu pensamento e
reafirmar a elegância de sua escrita barroca, para além da beleza
poética das letras de suas composições.
Caetano
tinha o cinema por vocação primeira, tendo até exercido quando jovem a
crítica cinematográfica. O sucesso instantâneo de sua carreira musical
redirecionou seu talento, mas de diversas maneiras aquela paixão
original continuou a manifestar-se. O cinema inspirou-lhe diretamente
canções, de “Cinema Olympia” a “Giulietta Masina”, e exala
inextricavelmente de outras, no ritmo e na decupagem, mitos e
dissonâncias. Ele compôs para filmes, como “Tieta” de Cacá Diegues, e
foi ator em algumas produções, como “O Demiurgo” (1972) de Jorge Mautner
e “Tabu” (1982) de Júlio Bressane.
Infelizmente
Caetano dirigiu até agora um único longa-metragem, “O Cinema Falado”
(1986), mal compreendido desde seu lançamento. “Filme de ensaios”,
explicita-se já em seu subtítulo. É uma obra que dinamita classificações
estanques, tendo o cinema de Bressane e de Godard como referências
centrais e, hoje revisto, faz pensar ainda numa improvável combinação
entre os cine-diários de Jonas Mekas (1922-2019) e as ficções oníricas
de Federico Fellini (1920-1993). É um filme que progride de surpresa em
surpresa e encanta pelo requinte plástico. Pena que pendências quanto a
direitos o tenham excluído de nosso ciclo.
Mas
frisei a urgência do agradecimento, e não a contribuição histórica.
Creio que Caetano protagonizou outro momento iluminado de sua trajetória
neste pouco mais de um ano de um país dilacerado pela pandemia da
covid-19. Num período longo e inédito de forçado isolamento social, ele
se fez presente para muito além da trilha sonora de mais uma parte de
nossas vidas.
De
três maneiras Caetano nos acompanhou no cotidiano concreto das relações
forçosamente virtuais e distanciadas da pandemia. Gravado por Paula
Lavigne, expôs seu dia a dia via Instagram, partilhando nossa
experiência comum da tacanha e estreita vida em quarentena. Foi como se
se exibisse o material bruto de um documentário doméstico em fragmentos
diários.
Em
setembro do ano passado, ei-lo como protagonista solitário de “Narciso
em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil, exibido no ciclo e
disponível pelo Globoplay desde sua honrosa estreia na Mostra
Internacional da Arte Cinematográfica de Veneza. Em plena escalada das
pulsões autoritárias do presidente Jair Bolsonaro, um nostálgico das
piores faces da ditadura militar (1964-1985), Caetano expôs em corpo e
voz a cruel experiência de sua prisão, em fins de 1968, e exílio, a
partir do ano seguinte, pelas forças de repressão.
Um
pouco antes, em seu aniversário de 78 anos de 7 de agosto, e um pouco
depois, em 19 de dezembro, antessala do Natal, Caetano se apresentou em
duas “lives” de inesquecível impacto. Contando em ambas com
participações dos filhos Moreno, Tom e Zeca, cumpriram rituais similares
em cenários marcamente distintos: a sala de sua casa, na primeira, um
teatro vazio no Rio, na segunda.
Em
agosto, o show doméstico foi uma espécie de missa pagã, uma cerimônia
de congraçamento de um país enlutado, fragmentado e temeroso, com uma
bandeira nacional, recriada por Raul Mourão na estante ao fundo,
resgatando civicamente um símbolo brasileiro conspurcado pelas viúvas do
autoritarismo. Em dezembro, a inusual apresentação para uma plateia
vazia, e sob protocolos sanitários rígidos, batizada “Vai Ter Natal”,
espelhou por um lado a sensação generalizada de vulnerabilidade no
retorno ao espaço extradoméstico, repetindo, por outro, o processo de
comunhão à distância imantada por um repertório sentimentalmente
partilhado.
Houve
Natal -e, para desentristecer um pouco, tivemos Caetano. Agudiza-se
ainda o morticínio da pandemia –mas ouvir suas músicas e rever sua saga
nos amenizam a dor. Como no verso de Fito Páez que tanto parece ser
dele: há coisas que te ajudam a viver.