Por Amir Labaki
Se em fevereiro do ano passado o Festival de
Cinema de Berlim conseguiu por um fio celebrar sem traumas sua 70ª
edição, não houve como escapar ileso em 2021. Na próxima semana, entre
1º e 5 de março, acontecerá exclusivamente para profissionais a primeira
etapa da 71ª Berlinale. Apostando numa evolução positiva do quadro
pandêmico na Alemanha, uma segunda fase com projeções públicas em salas,
espectadores e convidados, batizada de Especial de Verão, está agendada
para entre 9 e 20 de junho próximo.
A estratégia de duplicação
busca tanto preservar para o evento o status de primeiro grande festival
europeu do calendário, um bimestre antes de Cannes e seis meses antes
que Veneza, quanto atender a grande demanda de público que o distingue
frente a seus sucessores na agenda anual. O redesenho é francamente
heterodoxo: por exemplo, os concorrentes nas várias seções serão agora
exibidos em streaming para os jurados, profissionais da indústria
audiovisual e jornalistas credenciados, sendo apenas em junho
apresentados para a plateia berlinense, resguardando-se para esta
segunda fase o anúncio de todos os vencedores, incluindo o premiado com o
tradicional Urso de Ouro.
Para a escolha do prêmio principal, a
Berlinale formou um júri com os seis últimos cineastas vitoriosos: o
iraniano Mohammad Rasoulof, o israelense Nadav Lapid, a romena Adina
Pintilie, a húngara Ildiko Enyedi, o italiano Gianfranco Rosi, e a
bósnia Jasmila Zbanic. O sexteto discutirá uma mostra competitiva algo
menor (15 títulos) e mais tímida em diretores renomados, destacando-se
de pronto os franceses Céline Sciama (Mamãezinha) e Xavier Beauvois
(Albatroz), o casal libanês Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (Caixa de
Memória) e o norte-coreano Hong Sangsoo (Introdução).
Não
surpreende que seja a alemã a cinematografia com maior número de filmes
em concurso (quatro). São três ficções e um documentário: “Fabian”, do
veterano Dominik Graf, “Sou Seu Homem”, de Maria Schrader, e “Porta Ao
Lado”, que marca a estreia atrás das câmeras do ator Daniel Brühl
(Adeus, Lênin!), com “O Senhor Bachmann e Sua Classe”, de Maria Speth,
sendo a única não-ficção puro sangue na disputa.
Cicatrizes
simbólicas da pandemia: nenhuma produção dos EUA concorre ao Urso de
Ouro, confirmando a radical retração em lançamentos de filmes
hollywoodianos ou independentes americanos diante da maior crise da
história do mercado de salas de cinema. Há apenas um representante
latino-americano na competição: o mexicano “Um Filme de Policiais”, de
Alonso Ruizpalacios, uma produção híbrida entre ficção e documentários,
com dois atores interagindo com as forças de segurança pública na Cidade
do México.
O gigante tombo na participação brasileira, dos 18
títulos em 2020 aos 5 de alguma forma ligadas a talentos nacionais neste
ano, reflete a combinação desastrosa de duas crises: a agravada pela
pandemia e outra, a ela anterior, com a da paralisia dos mecanismos de
fomento via Ancine pelo governo federal. Nenhum filme nacional concorre
ao Urso de Ouro. Luiz Bolognesi (Ex-Pajé) volta a participar da
tradicional mostra paralela Panorama, desta vez com um documentário
ainda mais híbrido, “A Última Floresta”, sobre o universo cultural e a
luta pela terra dos ianômamis.
Fazendo história como primeiro
selecionado brasileiro para a Berlinale Séries, Gustavo Pizzi apresenta
“Os Últimos Dias de Gilda”, uma produção do Canal Brasil lançada por
aqui no final do ano passado e disponível pela Globoplay. Baseada no
monólogo teatral de Rodrigo de Roure, a série retrata os conflitos num
subúrbio do Rio entre uma mulher independente e forças repressoras
ligadas a uma igreja evangélica e a uma milícia.
No ciclo paralelo
Fórum Expandido, Paula Gaitán exibirá a instalação “Se Hace Camino Al
Andar”. Ainda no Fórum, a coprodução brasileira-argentino “Esqui”,
dirigida por Manque La Banca, investiga as relações trabalhistas em
Bariloche. Por fim, radicada na Europa, a dupla de cineastas Bárbara
Wagner e Benjamim de Burca concorre ao Urso de Ouro de curtas-metragens
com uma coprodução franco-germânica, “Cem Degraus”, sobre tradições
musicais irlandesas e norte-africanas.
Mesmo com uma redução em
torno de 30% no total de selecionados na soma de todos os ciclos, nada
menos que 34 documentários emplacaram uma vaga na Berlinale 2021. A
estreia mais pop é, sem dúvida, a de “Tina”, um perfil biográfico de
Tina Turner dirigido por Dan Lindsay e T.J. Martin, escalado dentro do
programa Berlinale Especial. Retorna, por sua vez, ao Fórum um dos mais
originais documentaristas em atividade, o israelense Avi Mograbi
(Agosto), com a estreia mundial de “Os Primeiros 54 Anos -Um Manual
Resumido para Ocupação Militar”. Entre alguns mestres e muitas apostas,
assim se reinventa também a Berlinale da pandemia.