Por Amir Labaki
Inviabilizou-se
o convívio, mas não o maravilhamento. Desenvolvida no ambiente virtual
devido à pandemia, a 25ª edição do É Tudo Verdade – Festival
Internacional de Documentário se encerrou no último domingo (4)
revelando uma nova geração de cineastas brasileiros e confirmando a
excepcionalidade também da mais recente safra internacional. Não menos
importante, esta versão emergencial em streaming alcançou um público de
dimensões e amplitude inéditos na história do festival, ainda a ser
precisamente quantificado diante de programas paralelos ainda em
desenvolvimento, como o ciclo exclusivo iniciado nesta semana, na
plataforma do Sesc-SP, com seis premiados nacionais da última década.
O
impacto da renovação geracional na produção brasileira refletiu-se na
premiação do júri nacional, formado pela cineasta Cristiana Grumbach,
pelo diretor e curador Francisco César Filho e pelo escritor Ignácio de
Loyola Brandão. Tanto o prêmio principal como uma das duas menções
honrosas destacaram longas-metragens de cineastas estreantes,
respectivamente, “Libelu – Abaixo A Ditadura”, de Diógenes Muniz, e
“Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil”, de Carol Benjamim. Outra
menção foi atribuída a “Segredos de Putumayo”, de Aurélio Michiles, o
filme visualmente mais elaborado de uma obra várias vezes destacada
neste quarto de século de festival.
Formalmente
muito distintos, os três investigam opressões passadas com ao menos
meio olho no presente. “Libelu” assume de pronto um dispositivo simples e
eficaz a partir da articulação de materiais de arquivo com entrevistas
gravadas numa única locação, na FAU-USP, vinculada à história da
tendência de militância universitária, de inspiração trotskista, que
marcou em fins dos anos 1970 a vanguarda da retomada dos protestos
estudantis contra a ditadura militar instalada em 1964. A rara
irreverência e o cosmopolitismo cultural de sua atuação trouxeram um
frescor e uma vivacidade que expandiram o perfil da jovem militância e
catalisaram carreiras profissionais de brilho próprio, como se constata
pela mera leitura dos créditos com os entrevistados para o filme.
“Fico
Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil” encorpa o gênero recente de filmes
sobre a traumática herança dos presos políticos pela ditadura. Filha de
César Benjamim, o mais jovem dos militantes da luta armada aprisionado e
torturado pelo regime militar, e sobrinha de seu irmão Cid, cuja
trajetória similar também o levou a prisão, sevícias e exílio, Carol
desenvolve uma estrutura epistolar para recompor o quanto possível o
quebra-cabeças incompleto de um drama familiar de três gerações (a avó
Iramaya, o pai, ela própria). Frente ao silêncio de César e à
inacessibilidade de documentos, recorre-se a peças dispersas, algumas
daqui, de arquivos familiares, outras da Suécia, acolhedor porto de
exilados sul-americanos nos anos 1970.
Michiles
também transita num tabuleiro expandido (a África colonizada, a grande
floresta amazônica, a Irlanda sob jugo inglês), tudo num passado ainda
mais distante, o início do século 20. Seu protagonista, o irlandês Roger
Casement (1864-1916), foi um pioneiro na denúncia de violações bárbaras
dos direitos humanos que irmanam os congoleses sob domínio belga, os
povos indígenas da Amazônia cruelmente explorados pela economia da
borracha e os pauperizados irlandeses com aspirações de autonomia
nacional. Depois de inspirar um dos melhores romances do peruano Mario
Vargas Llosa (O Sonho do Celta), Casement finalmente ganha agora as
telas, com a voz inconfundível de Stephen Rea (Traídos Pelo Desejo).
As
premiações de curtas-metragens frisaram a vaga renovadora, feminina e
negra. Edileuza Penha de Souza confirma o poder e a urgência do cinema
das mulheres pretas ao investigar as histórias árduas e comoventes de
“Filhas de Lavadeiras”, eleito melhor curta brasileiro. “Ver A China”
conquistou, por sua vez, uma menção para a estreante Amanda Carvalho em
seu empenho ascético de decifrar as imagens registradas em torno da
produção de chá na província de Fujian. Baseada na Alemanha, outra
cineasta negra brasileira, Denize Galiao, conquistou com o ensaio
autobiográfico “Saudade” uma menção na disputa internacional de
curtas-metragens.
Haveria
ainda muito a dizer sobre o triunfo na competição de longas-metragens
internacionais do dilacerante “Colectiv”, do romeno Alexander Nanau, e
da menção honrosa atribuída ao híbrido e agridoce “O Espião”, da chilena
Maite Alberdi, já distinguida com uma menção para seu longa de estréia,
“Hora do Chá”, ao visitar o festival em 2015. E também sobre a
atribuição pelo mesmo júri internacional, formado por Betsy McLane,
Chris McDonald e Jorge Bodanszky, do prêmio de melhor curta a “Meu País
Tão Lindo”, em que Grzegorz Paprzycki radiografa a ascensão neofascista
na Polônia contemporânea. Muita coisa está fora de ordem, mas o cinema
do real não está deixando barato.