Por Amir Labaki
Entre
as preciosidades disponibilizadas diariamente desde o início de abril
pelo novo serviço de streaming da Cinemateca Francesa, batizado HENRI em
homenagem a seu fundador, Henri Langlois (1914-1977), um pequeno filme
vem lançar luzes sobre um dos mais polêmicos e esquecidos projetos de
grandes cineastas internacionais sobre o Brasil. Com dez minutos de
duração, “Brasil” apresenta a introdução inédita, rodada na virada de
1949 para 1950 em Paris, ao documentário inacabado que o diretor francês
Henri-Georges Clouzot (1907-1977) veio rodar no país como uma espécie
de lua-de-mel com sua segunda esposa, a brasileira Vera Gibson-Amado
(1913-1960), filha do escritor e diplomata sergipano Gilberto Amado
(1887-1969).
“Felizmente
casado com Vera, nada melhor para provar o meu afeto por ela que
prestar uma homenagem merecida e sincera aos meus patrícios, fazendo um
filme para o mundo, a fim de levar ao estrangeiro a beleza desse país
que também é o meu de coração”, diria Clouzot ao Diário de Notícias
pouco depois de desembarcar com mulher e equipe no Rio, em maio de 1950.
Trazia 3.500 quilos de equipamento na bagagem e uma ideia vaga na
cabeça.
Um
mês depois, confessaria à Folha da Manhã: “Não preparei nada. (...)
Antes de vir para cá não quis ler nada sobre o Brasil, a fim de não ter
opiniões já feitas e preservar a primeira impressão”. De fato, nos dez
minutos de preparação à viagem agora revelados pela Cinemateca Francesa,
a pesquisa de Clouzot se limita a cenas examinando um mapa do Brasil e
conversando brevemente com o ator Louis Jouvet (1887-1951) sobre o país,
visitado por este com sua companhia teatral durante a Segunda Guerra.
Ao
mesmo tempo em que ocorria essa breve filmagem parisiense, ninguém
menos que Rubem Braga (1913-1990) entrevistava Clouzot para uma pioneira
reportagem, em fins de janeiro de 1950, no Correio da Manhã. “Não, não
pretendo fazer um documentário sobre o Brasil”, sustentava o diretor de
“O Corvo” (1943). “Não acredito em documentários: eles têm uma falsa
objetividade”.
“Por
que, então, não ter a coragem de fazer de uma vez um ‘documentário’ que
documente a nós mesmos, nessa reação diante das coisas, as vibrações de
nossa sensibilidade?”, perguntou retoricamente. “Stendhal fez isso na
Itália: fez um diário de ‘sua’ viagem e não de uma viagem pela Itália. É
o que tentarei fazer no cinema: o diário de uma viagem de um francês
pelo Brasil, o ‘meu’ diário do Brasil”.
Não
foi por certo a modéstia que inviabilizou o projeto de Clouzot. Seria
ele o próprio produtor e contava com o apoio do Ministério das Relações
Exteriores, como mostra o filmete no HENRI, numa situação muito
distinta, portanto, da enfrentada por Orson Welles aqui em 1942 durante
as atribuladas filmagens do inacabado “It’s All True”. Reconheça-se,
contudo, que não ajudou Clouzot ter tido de esperar quase dois meses
para liberar equipamentos na alfândega, além das dificuldades para
adquirir película virgem para filmagem.
Nunca
se soube ao certo o quanto e o que ele efetivamente filmou, além de
registros no Rio do contraste entre as favelas e grandes obras como a
construção do Maracanã original, e tampouco porque se convenceu a
desistir de “Brasil”. Sua versão de ter sido vítima de “advertências
veladas da censura” jamais convenceu. Nem decolou um segundo projeto de
um filme ficcional de inspiração neorrealista estrelada apenas por
atores negros na Bahia.
Se
seu voluntarismo cinematográfico não frutificou, Clouzot não sairia
daqui de mãos abanando, como reconstituiu impecavelmente Fernando De
Tacca em “Imagens do Sagrado” (Unicamp, 2009). Emprestando régua e
compasso do eminente etnólogo Edison Carneiro (1912-1972) para posterior
arrependimento deste, o cineasta debutou como antropólogo amador e
fotógrafo profissional flanando com Vera pelo universo do candomblé em
Salvador.
Um
ano depois de seu desembarque no Rio eram publicados na França o livro
“Le Cheval des Dieux” (O Cavalo dos Deuses) e a fotorreportagem “Les
Possédées de Bahia” (“As Possuídas da Bahia) na revista Paris Match. Um
subtítulo da matéria já dá uma ideia: “Ritos Sanguinários Herdados da
Idade da Pedra”. Leia De Tacca para conhecê-la na íntegra e compreender
as desastrosas repercussões de revista e livro.
“Sensacionalismo,
nada mais”, condenou Carneiro. “Colonialista”, acrescentou o sociólogo
francês Roger Bastide (1898-1974), também estudioso das religiões
afro-brasileiras. “Um pitoresco de uma violência excessiva”, protestou o
então mais internacional de nossos cineastas, Alberto Cavalcanti
(1897-1982). “Feitas com bazófia”, repudiou simplesmente Pierre Verger
(1902-1996). Sem qualquer contextualização, ninguém diz que aquele
inocente filminho no streaming da Cinemateca é o prelúdio de uma afronta
histórica.