Por Amir Labaki
A americana Dawn Brown
(Bobby Kennedy para Presidente) enviou um equipamento ao protagonista de
seu novo filme. O russo Andrei Konchalovsky (O Círculo do Poder) e a
brasileira Petra Costa (Democracia em Vertigem) solicitaram registros
pessoais pela internet. Na mesma linha mas com sentido de urgência,
Bebeto Abrantes (Recife/Sevilha) e Cavi Borges (O Sonho de Rui) gravam,
editam e já estão liberando on-line uma série de documentários curtos
com contribuições de uma dezena de personagens que autorregistra seu
cotidiano no Rio do isolamento. Cada documentarista redesenha suas
estratégias de filmagem para o cinema não parar durante a pandemia do
coronavírus.
Quase simultaneamente,
reportagens de veículos jornalísticos tão distintos quanto o Los
Angeles, o The Moscow Times e a GloboNews, para ficar em três exemplos,
estamparam projetos documentais em produção apesar das limitações
forçadas pelo confinamento. A americana Amy Kaufman flagrou a atividade
de cineastas que continuam tocando seus projetos iniciados anteriormente
ao início da epidemia.
O ex-fotógrafo da Casa
Branca Pete Souza, autor de um livro recente sobre os bastidores da
administração Obama, viu a câmera voltada agora para ele por Dawn Brown.
Dois terços do filme já haviam sido registrados, mas faltava uma última
entrevista. Brown alugou um kit de filmagem, com câmera, equipamento de
som e luz para que Souza gravasse as respostas ao questionário enviado
por um aplicativo de chamadas on-line.
O diretor exilado sírio
Feras Fayyad (The Cave) não conseguiu se segurar quando soube que se
iniciara em Berlim o processo por crimes contra a humanidade de um dos
responsáveis pelo período em que foi preso e torturado no início da
guerra civil em seu país. Montou uma equipe com dois técnicos e saiu
gravando depoimentos na capital alemã, desafiando as determinações de
isolamento como o veto a saídas públicas de mais de duas pessoas. Já a
dupla de realizadoras Betsy West e Julie Cohen (RBG), moradoras de
regiões distintas de Nova York, deu sequência à edição de seu novo
documentário sobre a escritora de livros culinários Julia Child
(1921-2004) orientando e discutindo diariamente pela internet o material
organizado por seus montadores.
Um dos grandes
documentaristas brasileiros continuou tocando a edição de seu novo filme
em parceria remota, à revelia da paralisação geral dos mecanismos de
apoio à produção. Outro me contou estar registrando o cotidiano do
confinamento familiar para um possível documentário futuro.
A primeira onda de
produções pós-coronavírus será pródiga em diários domésticos e
performances caseiras, assim como dramáticas reconstituições da tragédia
sanitária. Em torno de registros anônimos já foram anunciados alguns
títulos. Entitula-se “Quarentine Russian Style” o projeto em
desenvolvimento pelo veterano diretor russo Andrei Konchalovsky, isolado
em Moscou. Através de suas mídias sociais ele têm semanalmente
questionado seus candidatos a colaboradores sobre rotinas, temores e
transgressões, recebendo milhares de contribuições segundo Marina
Lapenkova-Maximova no The Moscow Times. Ainda sem diretrizes tão
específicas, a brasileira Petra Costa lançou no mês passado um projeto
de longa-metragem similar, batizado “Dystopia”.
Com pegada parecida, “Me
Cuidem-se”, de Bebeto Abrantes e Cavi Borges, distingue-se por estar
sendo abertamente desenvolvido como um “filme-processo”. Semanalmente,
há mais de um mês, a dupla recebe, edita e coloca em streaming no Vimeo
as gravações cotidianas de moradores do grande Rio. A regra básica é o
da inexistência de um encontro presencial prévio entre os realizadores e
seus personagens. Ao fim da pandemia, tudo será estruturado num longa
documental.
A mesma compulsão por
captar e difundir os registros ainda à quente pautou o projeto
“Espaços”, criado pelo cinquentenário Festival de Cinema de Tessalônica,
na Grécia. Com o apoio do Ministério da Cultura grego, Orestis
Andreadakis, diretor do festival, encomendou curtas de três minutos a
cineastas que participaram de edições anteriores. Inspiradas pelo livro
“Espèces d’Espaces” (Espécies de Espaços, 1974, inédito no Brasil) do
escritor francês Georges Perec (1936-1982), e “pelos dias de
quarentena”, duas séries de sete filmes já foram disponibilizados
on-line, incluindo contribuições do chinês Jia Zhang-ke (Visita) e da
americana Rachel Leah Jones (sem título).
Antes mesmo de conhecer o
projeto grego, tampouco eu me contive a realizar um diário filmado
quando convidado pelo Instituto Tomie Ohtake a dar um depoimento para a
série #juntosdistantes.
Ilhado em meu apartamento,
fiquei seco de palavras. Imagens e sons povoam-nos o cotidiano. O mero
registro deles pareceu-me falar mais. “D42” foi disponibilizado no site
do instituto no último domingo, dia 10, homenageando uma série de
documentaristas que admiro. Cada um traduz como pode este trauma
inédito.