Por Amir Labaki
Pela
segunda vez Santiago Álvarez (1919-1998) me traz a Havana. A primeira
foi em 1993, para prosseguir nas entrevistas que resultaram no livro “O
Olho da Revolução – O Cinema-Urgente de Santiago Alvarez” (Iluminuras,
1994). Agora se trata de discutir seu legado na celebração do centenário
de seu nascimento pela 41ª edição do Festival Internacional do Novo
Cinema Latino-Americano. De quebra, tenho o privilégio de participar do
júri da disputa de documentários de longa-metragem. Até este domingo,
concorrem 21 títulos ao todo, 5 dos quais brasileiros, incluindo um
retrato do próprio Santiago dirigido por Silvio Tendler, “Santiago das
Américas ou O Olho do Terceiro Mundo”.
“O
Olho da Revolução” originou-se da sensação de incompletude do
depoimento gentilmente concedido por Santiago a mim para o acervo de
História Oral do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), cuja
direção eu assumira poucos meses antes de sua visita, em meados de 1993.
Ao lado de sua carismática e inestimável companheira Lázara Herrera,
ele viajava pelo país que conhecera pela primeira vez em 1960 e voltava à
São Paulo para um pequeno ciclo de seus documentários.
O
primeiro encontro aconteceu no mesmo dia de seu depoimento ao museu.
Santiago desarmou de pronto qualquer solenidade com sua doçura, sua
modéstia e seu essencial senso de humor. Creio que eu esperava uma
personalidade mais sisuda para um documentarista conhecido como o
cineasta oficial da Revolução Cubana, responsável durante três décadas
pela realização do cinejornal estatal Noticiero ICAIC Latinoamericano,
além de autor de uma extensa obra pessoal paralela (Now!; L.B.J.; Hanói
Terça-Feira, 13), essencialmente dedicada a registrar a história e o
cotidiano de Cuba a partir da ascensão ao poder de Fidel Castro
(1926-2016), com uma pegada internacionalista que ainda o levou a rodar
mundo afora, do Vietnã ao Laos, do Chile ao Brasil.
Meu
então amplo desconhecimento de sua produção (pré-YouTube) foi logo
driblado pela surpreendente riqueza da trajetória pessoal relatada por
seu loquaz depoimento. Santiago narrava sem pose ou cerimônia sua
formação eclética, incluindo uma passagem interrompida pelo curso de
Medicina, sua decisiva decepção com o sonho americano a partir de um
período nos EUA no imediato pré-Segunda Guerra, a paixão pela música
aprofundada pela experiência radiofônica nos anos 1950 na CQM e seu
desmistificador pragmatismo no mergulho já maduro, aos 40 anos, na
fatura cinematográfica.
Nasceu
ali mesmo, no estúdio do MIS, o projeto de um livro e o compromisso de
minha primeira viagem a Havana, visando a debruçar-me no ICAIC (o
instituto cubano de cinema, que celebra no inicio de 2020 seu 60º
aniversário) sobre o essencial de sua produção e a complementar o
registro de seu depoimento autobiográfico. Assim se fez e, em dezembro
de 1993, a convite do festival, voei para Cuba, com direito a mojitos de
boas-vindas, novas entrevistas e generoso acesso ao arquivo e à sala de
projeção do ICAIC.
Um
programa singular de apoio ao intercâmbio cultural da Fundação Japão
foi essencial para viabilizar em 1994 a edição de “O Olho da Revolução”
em volumes separados, em português e em espanhol, e uma nova viagem ao
Brasil de Santiago e Lázara, para o lançamento do livro acompanhado por
sessões especiais no 5º Festival Internacional de Curtas-Metragens de
São Paulo. Arrependo-me até hoje de não ter podido retribuir o carinho
quando da apresentação do livro no Festival de Havana em dezembro do
mesmo ano, retido por obrigações profissionais.
Um
ano e meio mais tarde, não hesitei em dedicar à obra de Santiago
Álvarez a primeira retrospectiva do festival de documentários que
fundara, o É Tudo Verdade, honrado por mais uma visita do casal. Meu
último encontro com Santiago aconteceu em outubro de 1997 durante as
comemorações de 40 anos do Festival de Documentários e Animação de
Leipzig, que o celebrava com um prêmio especial após os múltiplos Pombos
de Ouro a ele atribuídos desde os pioneiros triunfos consecutivamente
em 1964, 1965 e 1966 com “Ciclón” (1963), “Now” (1965) e “Cerro Pelado”
(1966). Testemunhei a calorosa conversa entre ele e outra lenda do
cinema não-ficcional também convidada para as celebrações, o cineasta
britânico Ricky Leacock (1921-2011), o ex-assistente de Robert Flaherty
(1884-1951) que se tornou um dos pais da escola americana do Cinema
Direto. Eu não tinha como saber mas seria impossível uma dupla despedida
mais estelar.